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Política

Ditatura Militar: A ‘Cartilha da Repressão'

Um dos manuais de instrução de militares e agentes da repressão durante a Ditadura, de uso restrito das Forças Armadas e vedado à Imprensa, é localizado em Santos, considerada cidade vermelha pelo regime militar. Publicação não consta nem nos arquivos do

Carlos Ratton

Publicado em 26/04/2015 às 03:16

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No dia 24 de abril último, parte dos santistas lembrou com tristeza que há cinco décadas havia aportado em Santos o Navio-Prisão Raul Soares, temido pela prática de torturas físicas e psicológicas contra quem resistiu à Ditadura instalada no País a partir do golpe de 31 de março de 1964. Santos foi a primeira das 106 cidades que perderam autonomia política e administrativa por serem consideradas áreas de segurança nacional pelos civis e militares golpistas.

Exatamente 51 anos depois, na noite de 31 de março de 2015, na Cidade considerada Vermelha e República Sindicalista (ver nota), a reportagem do Diário consegue ter em mãos um documento restrito às Forças Armadas, usado na instrução de militares graduados e agentes do regime, encarregados de detectar, infiltrar e aniquilar líderes e grupos simpáticos ao comunismo que se instalaria no Brasil.

Impresso em 1969 com 266 páginas, edição limitada a cinco mil unidades, restrito e vedado à Imprensa, o Manual de Campanha – Guerra Revolucionária é uma das ‘cartilhas’ da repressão, guardada a ‘sete chaves’ pelos militares da reserva e seus familiares, articuladores e patrocinadores da Ditadura que, segundo relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) - entregue ano passado a presidente Dilma Rousseff – foi responsável por 434 mortes durante seus 21 anos de duração. Um número desconhecido de sobreviventes, até hoje, guarda no corpo e na mente as marcas adquiridas nos porões de tortura clandestinos mantidos na Nação.

O livreto verde, quase esfacelado do Ministério do Exército, dedica suas páginas a fomentar o medo do comunismo e à necessidade dos militares e agentes se prepararem para guerrilha urbana, evidenciada com o surgimento, em 1968, do grupo armado Ação Libertadora Nacional (ALN), pelas mãos do político, poeta e guerrilheiro Carlos Mariguella, seguido pelo rebelde Capitão Carlos Lamarca, líder da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), outra frente de luta, autora do assalto mais rendoso para a esquerda armada brasileira – US$ 2,5 milhões (ver perfis nessa reportagem).

Manual de Campanha Guerra Revolucionária não consta nem nos arquivos do Ministério de Exército (Foto: Matheus Tagé/DL)       

O manual Guerra Revolucionária também reproduz a verdadeira ideologia da caserna, dividida em nove capítulos que percorrem os caminhos dos princípios táticos; operações psicológicas; distúrbios civis e greves; métodos de ação; informação e contra informação entre outros temas, não esquecendo da versão sobre o que os militares batizaram do Golpe: “Revolução Democrática de 64”.

As instruções dos golpistas

Segundo a cartilha, a democracia brasileira foi ameaçada com a renúncia, em 1961, do então presidente Jânio Quadros, substituído pelo governo de João Goulart, cuja equipe com inclinações ‘marxista-leninista’ estaria promovendo o ‘desvio dos rumos tradicionais da Nação’, proporcionando a infiltração de comunistas nos partidos políticos, ministérios, Forças Armadas e nos sindicatos, que já estariam dominados.

Os autores alertavam sobre sucessivas greves, o enfraquecimento da economia, a propaganda de ideologia comunista, doutrinação por intermédio de livros didáticos, organização de grupos de choque e estímulo à indisciplina e desrespeito às Forças Armadas ‘por falta de repressão’.

Conforme o documento, os oposicionistas ao regime tinham seis classificações: os cripto-comunistas (não confessos por medo ou conveniência); simpatizantes (que poderiam aderir ao comunismo); os oportunistas (que associavam-se à ação partidária); os inocentes úteis (manipulados por vaidade ou inconsciência); os companheiros de viagem (aliados por objetivos comuns) e, por fim, os agentes de influência (jornalistas, professores, religiosos, funcionários públicos, empresários, sindicalistas, políticos, artistas e outros).

Comícios seriam utilizados para treinar oradores, aliciadores, estruturar organizações de agitadores e passeatas para deturpar manifestações estudantis, dando caráter revolucionário e efeito psicológico. Os militares ainda preocupavam-se com greves e resistência passiva (boicotes a serviços públicos). “Os revolucionários desacatam a polícia para provocar derramamento de sangue e criar mártires. O sangue derramado pode transformar o mais banal dos acontecimentos em um fato de grande repercussão por sua exploração emocional”, destaca a publicação.

os militares publicaram na cartilha que : “os revolucionários desacatam a polícia para provocar derramamento de sangue” (Foto: Evandro Teixeira)

Propaganda

Os militares e agentes da repressão informavam que a propaganda ideológica dos comunistas se dividia em três cores: branca (rádios e revistas com propaganda subversivas); a cinza (imprensa e material impresso em geral) e a negra (realizada em centros sociais e residências). Essa seria a mais perigosa. Destacam ainda a infiltração dos comunistas em partidos políticos.

Líderes rebeldes

O livreto determina que a maneira mais eficaz inibir a ação de ‘rebeldes’ seria prendendo, restringindo o contato com o povo, impedindo acesso aos tribunais e abolindo suas organizações e publicações. “Tudo consiste em agir sem dar a devida publicidade ao rebelde, principalmente se a causa dele contar com ampla simpatia popular”, instrui, ressaltando que um movimento rebelde jovem é inexperiente e de ‘fácil infiltração por agentes que ajudarão a desintegrá-lo’.

Censura

A cartilha ressalta aos militares e agentes que a censura tem eficiência limitada. Porém, o controle deveria ser empregado em agência de notícias e veículos de comunicação, visando a tranquilidade da opinião pública. “A propaganda (comunista) pela Imprensa tem sido muito incentivada. Outro meio é a exibição de filmes em residências e associações”, alertavam pela cartilha, que dedica dezenas de páginas a estratégias para desintegrar os que eles chamavam de ‘aparelhos’ – local (apartamento ou casa) usado como refúgio por uma ‘célula’ (grupo de ativistas) da organização política clandestina. Os aparelhos serviam para a realização de reuniões, guarda de material de propaganda, dinheiro e armas das lideranças comunistas.   

Sem resposta

Desde a descoberta do manual, a Reportagem vem buscando uma posição do Ministério do Exército. Por telefone e antes do Feriado de Tiradentes, um coronel identificado somente pelo sobrenome Brandão, garantiu a legitimidade do documento e que responderia aos questionamentos. Ele adiantou que a publicação não consta nem nos arquivos do Ministério de Exército. Até a última sexta-feira (fechamento da reportagem), ele não havia respondido aos questionamentos. 

A preocupação do general

A preocupação com treinamento de militares e civis, responsáveis pela manutenção do regime que se instalou no País a partir do Golpe de 64, está impressa no livro ‘Dos Filhos Deste Solo’, dos jornalistas Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio. Na obra, os autores relatam a indignação do general Oswaldo Gomes, representante das Forças Armadas, durante uma sessão da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, instituída em 1995 e vinculada ao Ministério da Justiça, visando reparação moral aos mortos e desaparecidos na Ditadura.

Em 1º de agosto daquele ano, a Comissão julgou os casos de Mariguella e Lamarca. Os autores revelam que Gomes, diante da possibilidade do reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas duas mortes, disse que seria um equívoco brutal e uma verdadeira provocação às Forças Armadas a responsabilização do Governo, diante de uma situação jurídica excepcional em vigor e de uma guerra revolucionária (título da cartilha), em que só havia um caminho: matar ou morrer.

A Comissão foi instituída após entrar em vigor a lei 9.140, que além de possibilitar o reconhecimento, previa a indenização financeira dos familiares das vítimas. Os dois casos (de Mariguella e de Lamarca) foram acolhidos por cinco votos a dois, sendo o Estado responsabilizado por suas mortes. O jurista Miguel Reale Júnior presidiu a comissão, que tinha como um dos membros o jornalista e deputado na ocasião Nilmário Miranda. 

Mariguella e Lamarca

A Esquerda Brasileira e a resistência à Ditadura tiveram como uma de suas principais lideranças Carlos Mariguella - considerado o ‘inimigo número um’ da Repressão. Sua história de luta começa bem antes, em 1936, durante a Ditadura Vargas, quando foi preso por subversão e torturado. Ao sair da prisão entrou para a clandestinidade até ser recapturado, em 1939. Novamente foi torturado e ficou na prisão até 1945, quando foi beneficiado com a anistia pelo processo de redemocratização do País.

Mariguella elegeu-se deputado federal constituinte pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1946. Na década de 60, larga o partido e lidera a ALN. Na noite de 4 de dezembro de 1969, é  surpreendido por uma emboscada na Alameda Casa Branca, em São Paulo, conduzida pelo então delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, chefe do Esquadrão da Morte e considerado o maior torturador do Regime. Mariguella estava sozinho. A ALN foi o grupo que mais teve baixas na Ditadura: 53 mortes.

Lamarca

O capitão Carlos Lamarca largou as fileiras do Exército, levou consigo 63 fuzis, metralhadoras e munição, ingressando de cabeça na guerrilha urbana e na clandestinidade também na década de 60. Ele assumi a VPR e depois o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), responsável, junto com a ALN, pelo primeiro sequestro de caráter político que teve êxito na história: o do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969. Caçado por todo o País, ele comandou diversos assaltos a bancos, montou um foco guerrilheiro na região do Vale do Ribeira (Sul do Estado de São Paulo) e liderou o grupo que sequestrou o embaixador suíço Giovanni Bucher no Rio de Janeiro, em 1970, em troca da libertação de 70 presos políticos. Lamarca foi morto em 17 de setembro de 1971, com sete tiros no interior da Bahia, após uma fuga de quase 300 quilômetros pelas forças de segurança. A VPR teve 37 guerrilheiros mortos. (Fontes: sites, livros e publicações oficiais).             

NOTA                 

Antes da Ditadura, Santos era conhecida e temida como uma cidade tradicionalmente oposicionista em função dos movimentos políticos e trabalhistas. Por isso ficou denominada Cidade Vermelha e República Sindicalista. Os conspiradores do Golpe de 64 acreditavam que Santos era dominada pelos comunistas e que fuzis e metralhadoras eram armazenados nas sedes dos sindicatos. Com tudo isso, Regime decidiu aumentar a repressão, fazendo aportar no canal do Estuário, o Navio-Prisão Raul Soares. (Fonte: Raul Soares - Histórias que não se apagam)

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