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Cotidiano

Adeus ao cheiro de pipoca com cultura

Uma crônica para se despedir do Espaço de Cinema, que após 12 anos, fechou as portas

Vanessa Pimentel

Publicado em 15/08/2019 às 19:42

Atualizado em 15/08/2019 às 19:48

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As telonas das três salas do Espaço de Cinema, no Shopping Miramar, exibiram filmes pela última vez / Nair Bueno/DL

É, eu não consegui. Mesmo cobrando ingressos mais baratos do que os cinemas das grandes redes, ou oferecendo pipoca por um preço mais justo, não deu. Ontem, eu abri as portas pela última vez. 

Também foi a última vez que abriguei uma conversa entre a dona Irene Maciel, de 88 anos, e Hyde Carvalho, de 91. As senhoras, moradoras de Itu, vinham sempre fazer-me uma visita quando estavam em Santos.

Durante a tarde de ontem, enquanto olhavam a programação de filmes, foram pegas de surpresa com a notícia de que era o meu último dia. Quem contou pra elas foi outra amiga minha, a Eliane de Melo. Geógrafa, vinha ao menos uma vez na semana me fazer companhia. Se acomodava em uma das minhas poltronas e ali se distraia com as histórias que eu gostava de contar via projetor. 

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Ontem, durante todo o dia, ouvi conversas em tom de tristeza sobre o fim da minha vida. Eu também estou. Tanto, que o cheiro de café no salão me pareceu mais fraco nesta quarta-feira chuvosa e fria. Até as animadas pipocas pularam sem vontade na máquina. O freezer abrigou poucas latas de refrigerante, suficientes para suprir a demanda das horas que antecediam a partida. 

Preparamos poucos salgados e o mostruário de balas, jujubas e bombons já estava quase vazio. O motivo? Evitar sobras para um dia seguinte que, dessa vez, não viria.  

Meus seis expositores de madeira iluminados com luz amarela já sabiam que se acenderiam pela última vez. Também sabiam que a missão de expor os filmes e as sessões do mês estava no fim. As fitas vermelhas que demarcavam onde devia se posicionar a fila dos ingressos perderam sua função em um salão vazio. 

O som das conversas vespertinas de quem veio se despedir foi abafado pelo barulho das fitas adesivas que fechavam as caixas de papelão. Dentro delas, as louças que serviram durante 12 anos os clientes do meu café, agora, vão embora para São Paulo servir em outro lugar.   

Três companheiras de longa data foram as responsáveis por embalar tudo. Uma delas se chama Valéria Opasso. Trabalhou servindo o público do café durante anos e, na hora de dizer como se sentia no último dia de trabalho, as lágrimas falaram por ela. Pois é, eu também vou sentir saudade, Valéria. E, por uma ironia do destino, justamente no dia em que encerro as atividades – 14/08/2019 – é também quando você completa 10 anos de dedicação. 

“Lembro até hoje do dia em que comecei. Fiz amigos aqui e foram nestas salas que aprendi a gostar de filmes de arte. Estou arrasada. Ah, e meu patrão, o seu Ademar, foi o melhor que já tive”. Falou Valéria, chorando. 

Minha outra funcionária, a Alessandra, nem conseguiu contar como foram esses 11 anos por aqui. “Se eu falar eu choro”... Tudo bem, o choro diz também. 

E Silvia Oliveira, quase uma mãe para mim. Quando arrendou o espaço do café, cuidou de tudo: decoração, cardápio, disposição das mesas.  

“É uma delícia abrir um cinema, mas é horrível fechar. A programação desse lugar era o que dava alma pra ele”. Fico lisonjeado, dona Silvia. Obrigado. 

No balcão, admiro pela última vez Patricia Deliz, de 78 anos. Sentada sob a meia-luz, sempre com muitas pulseiras no pulso e o guarda-chuva deixado de lado, ela chora e enxuga as lágrimas com um guardanapo. 

“Vinha aqui duas, três vezes por semana, durante sete anos. Sete anos! É muito tempo para ver esse cinema morrer sem chorar. Sabe, cinema a gente pode até substituir, mas não substitui os amigos que fiz aqui”. 

Ela pausa para limpar os olhos, eu e Valéria também. É triste ver partir quem me fez funcionar durante esses 12 anos. É triste dar adeus para o projetista, para a faxineira, para Valéria, Alessandra, Silvia, Patrícia, e meu gerente Raphael.  

Me despeço de quem veio assistir minha última sessão das 15h. E quando a sessão acaba, percebo como sai gente sozinha da sessão. Acho que eu fui o cinema que mais abrigou pessoas que não veem problema nenhum em irem sozinhas ao cinema. Gente assim é gente boa de ter por perto.

É dolorido fechar as portas em um momento tão pesado do nosso país. Mas, vou sabendo que a arte e a cultura, mesmo tão subjetivas, sempre serão imensamente poderosas.   

Apago as luzes, desligo o projetor e saio de cena com a sensação de que fui um bom companheiro em tardes solitárias de dona Patrícia; tratei bem minha equipe que chora a minha despedida; contei histórias emocionantes que ensinaram e ampliaram a visão de quem, através de um filme, aprende sobre outro mundo. 

Vou embora feliz ao ouvir de dona Patrícia que de todos os filmes que assistimos juntos, o que mais a tocou foi justamente “Intocáveis” - esses trocadilhos bons da vida e da arte... Obrigado aos amigos pela amizade improvável, tal qual este belo filme francês. 

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