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A Vila Mirim é um dos maiores reflexos do estado de vulnerabilidade e luta por direitos humanos da região / Nair Bueno/DL

Apesar de ser a cidade que mais se desenvolveu economicamente na Região Metropolitana da Baixada Santista nas últimas três décadas, ainda falta muito para Praia Grande ter o mesmo desempenho na área social. É no município que, a menos de dois quilômetros da Prefeitura (sede administrativa em que fica o gabinete da prefeita Raquel Chini - PSDB), está a comunidade que é um dos maiores reflexos do estado de vulnerabilidade e luta por direitos humanos da região: a Vila Mirim.

No local, a água - potável e fundamental para a sobrevivência humana - é desviada da rede da Sabesp por uma mangueira improvisada e exposta a inúmeras bactérias. As 58 famílias ainda bebem, cozinham, lavam roupas e tomam banho de balde numa das regiões mais ricas do Estado.

A luz também é desviada e a limpeza urbana praticamente não existe. A empresa só recolhe o lixo nas ruas pavimentadas que ficam a metros de distância da entrada da comunidade, que se instalou em chão de terra batida e cheio de coliformes fecais. Não há rede de esgoto.

Esse mesmo chão, que separa os casebres construídos de sucatas e sem a espessura necessária para conter o frio, é que serve de 'parque infantil' para dezenas de crianças, com menos de 10 anos, que improvisam brinquedos de tudo o que encontram pelo caminho.

"Olha tio esse arco e flecha que eu fiz", disse uma pequena menina de uns 10 anos, que utilizou o que restou de uma pipa para mostrar sua criatividade. Outro menino, de uns seis anos, falava com orgulho da bolinha de borracha transparente e velha que encontrou pelo caminho.

Um terceiro, um pouco mais novo, se encantava com a máquina fotográfica da equipe do Diário a ponto de abrir um sorriso largo depois de ver seu rosto na telinha.

SARNA.

O mundo infantil e ingênuo das crianças da Vila Mirim não as defende de perigos, incluindo os que as atingem de forma invisível e mostra os resultados visíveis da pior forma possível, como doenças de pele só adquiridas em locais sem saneamento básico.

Chegou-se ao ponto de creditar à comunidade da Vila Mirim a culpa do surto de escabiose (sarna humana) que atingiu o Município.

Situação que jamais poderia (deveria) ocorrer, pois um centro de Referência da Assistência Social (CRAS), unidade pública que oferece atendimentos individualizados (ou em grupos) a indivíduos e famílias e vulnerabilidade social, fica a 20 metros - praticamente na porta da comunidade.

Nele, as pessoas deveriam compartilhar questões diversas relativas ao seu dia a dia em família e na comunidade, a exemplo das suas dificuldades de relacionamento, de sobrevivência, dos cuidados com os filhos e até situações mais delicadas como violência doméstica.

MÃES.

Cleide Rodrigues da Silva, que mora na comunidade há três anos com os filhos, diz que praticamente nasceu nas imediações.

"O que mais castiga a gente é a falta de higiene. Até para respirar fica difícil. Nunca alguém do CRAS veio nos prestar assistência. Além da sujeira, a falta de iluminação torna tudo mais difícil, principalmente para as crianças, que vivem doentes por brincarem em local impróprio".

Soraia Gomes vive de reciclagem. Ela conta que a maioria das pessoas mora no local por conta da falta de opção em função da renda - a maioria trabalha de forma informal.

"A mangueira que leva água para nossas casas também leva impurezas. As casas tem fossa e o lixo doméstico, que tem que ser colocado próximo ao asfalto, cai no chão. Moramos como bichos", afirma.

BRAÇO PESADO.

O único braço do Estado que a comunidade conhece é o repressivo. Cotidianamente, guarnições da Polícia Militar realizam 'visitas' aos moradores em busca de alguma situação que os condenem à pecha de marginais no sentido criminoso, apesar de viverem sem ter cometido qualquer delito mas, de certa forma, socialmente à margem da sociedade.

O Município também não dá trégua. No último dia 15, os moradores foram surpreendidos com instalação de barreiras de concreto na entrada da comunidade pela Prefeitura.

O bloqueio foi colocado para impedir novas invasões, mas impedia a passagem de qualquer tipo de veículo, até mesmo ambulâncias e viaturas do Corpo de Bombeiros. Os obstáculos de concreto tinham avisos em vermelho, informando que aquela área pertencia a uma região de proteção ambiental.

No entanto, fragilizados pelas condições em que vivem, pelo surto recente de escabiose, pela dificuldade nos acessos, que impedia até a entrada de carroças dos catadores de material reciclável, os moradores ficaram bastante indignados e desesperançosos.

Ajuda externa traz sopro de esperança

A empresária Patrícia Patrali, responsável pela Organização Não-Governamental (ONG) PG Invisível, também conhece o drama de perto e não mede esforços para ajudar. "Depois do bloqueio e demarcação da área de proteção ambiental, a comunidade ficou bastante assustada, apesar de saber que está em local irregular. As crianças, principalmente, quando ouvem um trator se aproximando e veem a apreensão do pai e da mãe, ficam com muito medo. Isso é muito triste", afirma.

Patrícia, no entanto, alega que a comunidade se acalmou, principalmente depois que a prefeita Raquel Chini descobriu, sem intermediários, a real situação da comunidade e tomou algumas providências. "Houve congelamento da área, cadastro dos moradores e vacinação", afirma.

Patrícia acredita que as próximas ações do poder público serão para dar mais respeito e dignidade à comunidade. A PG Invisível foi criada para ajudar com comida, medicação, roupas e doações de forma geral os núcleos vulneráveis da Baixada.

ADVOGADA.

Apesar de conhecer muitas comunidades carentes da região por ser uma das representantes da Rede Nacional de Advogadas Populares (RENAP) e integrante do Movimento Despejo Zero, Gabriela Ortega não esconde a indignação com o que viu na Vila Mirim. Ela revela que está iniciando um cadastramento das famílias que moram na comunidade para mensurar a situação socioeconômica dos moradores e buscar melhorias junto aos órgãos públicos.

"Apesar das dificuldades, muitos possuem hortinhas. Mas a questão sanitária é gravíssima. Algumas casas não tem banheiro, nem sequer cozinha. Vi uma fogueira com caldeirão, que é um fogão a lenha coletivo, bem improvisado. Em que pese a área ser ambiental, e por isso os moradores são ameaçados de despejo a todo momento, existe um projeto da Prefeitura para instalação da nova Câmara de Vereadores na área. Projeto amplamente divulgado nas redes do poder público", adianta.

A advogada também esteve no local semana passada, quando a Prefeitura promoveu a derrubada de alguns barracos e marcação dos demais. Gabriela se mostrou solidária e percebeu o susto das pessoas com o que se desenhava à frente. "Já foram avisados que não serão contemplados com nenhum auxílio ou programa. Idosos estão perplexos em deixar suas casinhas que, mesmo precárias, foram construídas após uma vida toda de luta pela sobrevivência", afirma.

A advogada defende que há um equívoco regional em relação à habitação popular. "Mesmo se decidirem por acomodá-los em conjuntos habitacionais, a alternativa não é ideal, pois impõem taxas e despesas que não são compatíveis com suas rendas e eles acabam abandonando e construindo em outro local", avisa.

Prefeitura volta atrás, mas comunidade carece de assistência

Depois do estresse causado pela instalação das barreiras, a Prefeitura de Praia Grande 'correu' para confirmar que, apesar dos rumores de que os moradores poderiam estar passando por uma espécie de isolamento devido à doença, os 12 obstáculos instalados foram realmente para evitar novas invasões e construções irregulares.

No entanto, sensível à situação econômica dos moradores, voltou atrás. Equipes visitaram a comunidade e retiraram, com a ajuda dos próprios moradores, uma das barreiras de concreto instaladas na entrada, liberando o acesso a carroças de transporte de reciclados.

O bairro está em uma área de preservação ambiental e foi congelado no dia 23 de junho. Portanto, não se sabe como será instalada a sede da nova Câmara de Vereadores.

Um cadastro socioeconômico foi desenvolvido com 58 famílias presentes no local, mas novas barreiras serão efetuadas ao longo das próximas semanas em outras regiões da Cidade, monitorada diariamente com imagens de satélite e drones.

Quanto à contenção do surto de sarna humana, a Prefeitura informou que os moradores foram atendidos e ainda estão sendo acompanhados por equipes da Secretaria de Saúde Pública (Sesap). No dia 28 de junho, foram realizados 336 atendimentos, com 82 consultas médicas no Município por conta da doença.

Sobre o futuro da comunidade em termos habitacionais, a Prefeitura não respondeu aos questionamentos da Reportagem.

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