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'CHORA, FOTOXÓPI'

Filipe Grimaldi: 'Pensei em construir uma comunidade de resgate da profissão de letrista'

Com milhões de views, artista e professor paulistano explica em vídeos curtos sobre saberes artísticos populares que vão de cartazes de supermercado a filetes de caminhão

Bruno Hoffmann e Natália Brito

Publicado em 27/01/2024 às 10:00

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O artista visual Filipe Grimaldi durante entrevista à Gazeta e ao Diário do Litoral / Ettore Chiereguini/Gazeta de S. Paulo

Filipe Grimaldi se apressa em explicar à reportagem da Gazeta que não nutre nenhum sentimento negativo em especial contra o Photoshop, o popular programa digital de edição de imagens. “Os designers até vêm me cobrar”, diz, entre risos. “Mas o ‘chora, fotoxópi’ significa que a mão humana sempre e eternamente será superior à máquina, e foi o Photoshop que foi pego como representante do digital”, afirma, sobre o seu bordão mais famoso.

O paulistano coleciona quase 800 mil seguidores no Instagram com reacts da atuação de artistas visuais Brasil afora, quase sempre terminando com a expressão que coloca o Photoshop para choramingar diante da arte manual. São três vídeos diários, em um total de 1.300 até então, seja de grafiteiros, muralistas, fileteiros de caminhão, letristas, cartazistas e até pichadores. Com isso, influencia o público leigo, que começa a entender mais de técnicas visuais, e ajuda a divulgar os artistas, que passam a ser mais reconhecidos e até a fecharem trabalhos mais rentáveis.

Nesta entrevista, feita em seu estúdio na zona oeste da Capital, ele, que é especialista em letras e professor-letrista, também conta sobre sua trajetória pré-Instagram, a importância dos saberes populares e como tem aumentado a presença de mulheres em estilos artísticos que antes eram quase totalmente masculinos.

Como começaram os reacts?

Comecei porque achava muito difícil filmar e pintar. Eu assistia Casimiro [do CazéTV], e pensei: “Vou fazer um react só de arte”. No início iria fazer só sobre letra, por ser o que eu manjo. No quinto vídeo, de um russo fazendo uma técnica americana, o negócio viralizou. Saí de 20 mil visualizações para milhões de pessoas. Então pensei que ou eu parava ou abraçava aquilo. Decidi tentar mais cinco dias. E vi que as pessoas começaram a engajar, a agradecer: “Você está me apresentando artistas”, “está me apresentando estilos”, “sou artista e gostei do cara fazendo folha de ouro”. Na comunidade da arte, aquilo começou a ser valorizado, pessoal começou a mandar o vídeo. A rede depois de uns 6 meses pulou de 30 mil para 200 mil pessoas. A bolha da arte é difícil de ser furada, e os reacts furaram a bolha. Na hora que passou dos 150 mil [seguidores] já furou.

Após o crescimento você passou a ter mais preocupação com o conteúdo?

Total. Passei a fazer uma curadoria. Colocar mais cartazistas mulheres, pichação, grafites feitos em terrenos baldios. Tentar fazer com que o público entendesse como as cores da cidade chegam àquele ponto. Como a [avenida] 23 de Maio é totalmente grafitada. Os artistas oferecem sua liberdade em troca daquilo. Podem ser presos e perder o réu primário para fazer um desenho na rua. Eu comecei a comprar essa briga. Quando chego nos lugares os cartazistas, grafiteiros, pichadores e outros artistas visuais têm um sentimento de agradecimento, porque começaram a ser vistos de outra maneira. Atinjo 1 milhão de pessoas por dia, quase igual um canal de TV. Então comecei a caprichar e a prestar mais atenção para guiar esse conteúdo. Deu certo.

Como foi essa transformação profissional sua para iniciar os reacts?

Eu tinha uma carreira de artista e de professor-letrista já consolidada quando comecei a fazer os reacts. Eu acho que isso também foi um dos motivos de ter dado certo. Pessoal olhava a pensava: “Pô, ele pinta há 15 anos, ele sabe do que está falando”. Meus amigos grafiteiros começaram a pedir uma forcinha, e o negócio começou a engajar, as pessoas começaram a querer fazer vídeo para serem reagidos. Dava mil seguidores [a quem aparecia na página]. E aquilo começou a virar uma roda, uma comunidade de pessoas que faziam vídeo para ser reagido.

Como você começou nas artes?

Me formei em design nas Belas Artes em 2005. No começo fazia identidade visual, mas eu já tinha um trabalho relacionado a letras, já pesquisava tipografia e fazia processos analógicos numa época já digital. Na sequência conheci as técnicas de caligrafia, e comecei a ir para esse lado da pintura de letras. Larguei a carreira de designer e comecei cada vez mais a me desenvolver como professor e como letrista. Faz 10 anos que pinto fachadas de restaurantes, de bares, crio identidades visuais, chão, teto, todas essas coisas. E como professor resolvi me desenvolver porque percebi que havia um buraco ali: não tinha mais letristas que ensinavam.

Não existiam cursos?

Isso. A pintura de letra é uma sabedoria popular, ensinada de pessoa para pessoa, e não tinha um curso profissionalizante, uma faculdade, nada disso. Pensei em construir uma comunidade de resgate da profissão de letrista. Falei para o Sesc, e o Sesc comprou a ideia. Esse projeto existe há 8 anos. Já se formaram 8 turmas, de 15 pessoas cada, que pintam e que concorrem comigo no mercado.

Hoje, há muitas mulheres letristas também?

Sim. Hoje são 30 mulheres letristas formadas pelo Sesc, que sabem vender o trabalho, sabem se posicionar, fazem o trabalho pelo Brasil inteiro e estão no mesmo lugar que os homens. Letrista era uma profissão estritamente masculina, igual caminhoneiro, eletricista, encanador. Agora, tem essa geração de mulheres. Isso foi bem importante.

Existe uma letra brasileira, um jeito de fazer brasileiro?

Existe. É o que chamamos de letra popular brasileira, e tenho um exemplo aqui [Filipe mostra um quadro com o abecedário pintado]. Ele não existia catalogado, mas um alfabeto nas placas dos comércios informais, às vezes nos cartazes do supermercado e muito nos caminhões e nas placas de estradas. Mas não tinha de A a Z, completo. Fomos então tirando foto dos comércios e vendo as peculiaridades das entradas, e fizemos o alfabeto popular. E cada mão gera um alfabeto diferente por causa da entrada, por causa do peso da mão, por causa da largura do pincel. Cada um acaba fazendo de uma maneira esse alfabeto, que é o primeiro alfabeto que chamamos de popular brasileiro.

Filipe GrimaldiO artista mostra o abecedário usado para ensinar a letra popular brasileira

 

Há outro, em outras regiões do Brasil?

O outro, que é 100% nacional, sem nenhum estrangeirismo, é o alfabeto amazônico. Chamamos de letra decorativa amazônica. É uma letra só de embarcação e só existe no Norte do Brasil – não tem em nenhum outro lugar sem ser de Belém do Pará ao Marajó. É difícil de ver na rua, apesar de agências e marcas já estarem começando a valorizar esses letristas.

Os filetes de caminhão são uma arte popular também, não?

O filete de caminhão é um patrimônio imaterial, mas que infelizmente não vai ser mapeado antes de sumir. É algo que está com os mestres fileteiros, que em geral são pessoas mais velhas e que não estão interessadas em passar para frente essa sabedoria. Tem também de as carrocerias não serem mais de madeira, mas de metal, com uma série de novas legislações. Isso faz com que metade do espaço seja ocupada por adesivos. A galera começou meio a desencanar. É raro um caminhoneiro levar hoje um caminhão para ser pintado.

Essa técnica tem origem brasileira?

Descobrimos em pesquisa que as carrocerias pintadas vieram do interior paulista. Começaram com um cara de Araraquara. Ele começou a filetar uma frota de caminhões para ser diferente, para ser reconhecido nas pistas. E o pessoal entrou na onda de querer customizar: o meu é vermelho, preto e branco; o meu é azul e preto. omeçou a se popularizar.

Você publica muito sobre cartazistas de mercado, que normalmente é um segmento não muito valorizado. Como se dá isso?

O cartazista é uma profissão regulamentada, baseada no salário-mínimo. E na hora que os cartazes acabam ele vai lá repor estoque. É uma profissão difícil. O que aconteceu é que, com os reacts, o dono do supermercado passou a falar: “Esse cara que trabalha para mim é um gênio”. E ele começou a ter mais oportunidades. Bastava um vídeo viralizar para as pessoas da comunidade virem parabenizar, dizer que ele era um artista. A pedir para fazer um cartaz para um aniversário. Começou a rolar encomendas e novas oportunidades.

Filipe Grimaldi'O filete de caminhão é um patrimônio imaterial, mas que infelizmente não vai ser mapeado antes de sumir'/Ettore Chiereguini/Gazeta de S. Paulo

 

E em relação aos letristas?

Eram pessoas invisíveis. E com os reacts começou a se criar um olhar para uma estética popular. O pessoal começou a ver um trabalho e falar: “Nossa, o cara fez a mão mesmo, que bonito”. Falo muito da estética popular por causa do lance da memória afetiva. Você vê um coelhinho no cartaz de um supermercado e pensa “que bonitinho”, e isso se dá porque você viu aquilo a vida inteira. Filete de caminhão se acha bonito porque se viu a vida inteira. E quando olha de novo bate aquela afetividade. Igual com desenhos considerados toscos, como aquele pãozinho na padaria, aquela coxinha torta, a Turma da Mônica torta na parede. Aquilo está na nossa cabeça. Na hora que vê uma Turma da Mônica pintada no interior do Ceará você pensa: “Cara, isso é uma obra de arte”. As pessoas criaram esse olhar.

Qual é o impacto na vida profissional dos artistas que você reage?

Às vezes tomo até cuidado, porque o impacto é muito grande. Se o cara foi viajar e eu reagi a um vídeo dele vão ter pessoas engajando com ele dois dias seguidos e ele não vai estar lá para interagir. Eu não controlo o algoritmo, mas às vezes tento driblar o algoritmo para um vídeo de alguém já famoso não roube views de um iniciante. A ideia é que todo mundo tenha em média 120 mil views. Com muito sucesso vai a até 20 milhões.

Já chegou a 20 milhões?

Sim, de uma cartazista, e aquilo mudou a vida dela. Ela na sequência ganhou por um trabalho o mesmo que ganhava no ano inteiro.

Você consegue atender a todos os artistas que te mandam vídeos?

Não consigo, e eu peço desculpas. É impossível. São 300 mensagens por dia, e às vezes perco o vídeo de alguém que gosto muito ou de alguém muito bom. Tento manter o mais orgânico possível.

Por fim: O que você tem contra o Photoshop?

Não tenho absolutamente nada contra o Photoshop [risos]. Sou muito cobrado por isso, aliás. Os designers até vêm me cobrar. É uma ferramenta para todo mundo. Mas o “fora, fotoxópi” significa que a mão humana será sempre e eternamente superior à máquina, e foi o Photoshop que foi pego como representante do digital. Poderia ser fora, Inteligência artificial, fora, Adobe. Mas peguei o Photoshop por ser um coitado que todo mundo conhece, que trabalha para todo mundo igual a um escravo, e ele vai chorar em todo vídeo. Começou num vídeo em que o cara faz um desenho maravilhoso, que parecia digital, só que pintado 100% a mão, e eu larguei um “chora, Photoshop”, espontaneamente. E aí comecei: fora, Photoshop, fora, todo mundo. Vamos estudar. Comecei com os bordões.

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