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Papo de Domingo

“Prefiro esquecer meus adversários”

Darcy Rodrigues, braço direito do Capitão Carlos Lamarca, concedeu entrevista exclusiva ao Diário do Litoral

Carlos Ratton

Publicado em 12/11/2017 às 11:00

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O sargento reformado Darcy Rodrigues, braço direito do Capitão Carlos Lamarca / Arquivo DL

A frase é do sargento reformado Darcy Rodrigues, braço direito do Capitão Carlos Lamarca e refere-se aos seus torturadores. Ele pegou em armas para lutar contra a Ditadura Civil-Militar instaurada no País entre 1964 e 1985, foi preso, exilado e no alto de seus 80 anos, garante que faria tudo de novo em nome de um Brasil democrático. Ele esteve recentemente em Santos, participando de uma audiência pública organizado pelo Comitê Popular de Santos por Memória, Verdade e Justiça, e concedeu entrevista exclusiva ao Diário do Litoral. Confira os principais trechos:

Diário do Litoral – Quando o senhor teve o primeiro contato com o Lamarca?
Darcy Rodrigues
– Ele saiu da academia militar em 1960, foi para o Regimento de Infantaria como aspirante, se tornou 2º tenente em plena crise de 1961. Foi transferido para o sul do país e organizou uma possível mudança de lado. Essa intenção dele foi largamente conhecida no meio dos sargentos. Eu estava na Escola de Sargentos, pertencia ao grêmio recreativo, que elabora um manifesto em apoio à Constituição, que garantia a posse do presidente João Goulart (Jango). Fui promovido para o 4º Regimento onde um sargento amigo do Lamarca que o alertou sobre minha chegada e minha ideologia.

Diário – Mas o contato foi imediato?
Rodrigues –
Em janeiro de 1962 ele (Lamarca) e eu éramos instrutores. Ele interrompeu a minha instrução e disse que queria falar comigo. Não me abri de cara. Após inúmeras conversas sobre o Governo Jango, ele me convidou a servir junto com ele pela ONU (Organização das Nações Unidas) no Canal de Suez (Egito). Eu cheguei a ser selecionado, mas desisti por questões familiares.

Diário – Quem entrou para a luta armada primeiro?
Rodrigues –
Eu praticamente recrutei o Lamarca para a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária - grupo de extrema esquerda que lutou contra o regime militar). Começamos a discordar, junto com outros militares, do regime. Ele me prometeu um contato com o Marighella (Carlos Marighella, dirigente do Partido Comunista e considerado o maior inimigo da ditadura brasileira). Eu já participava de um movimento ligado ao Leonel Brizola. O Marighella pediu que Lamarca montasse um grupo de oficiais revoltosos e eu de sargentos. Fui preso em 1964 por participar de manifestações contra o regime. Nosso papel era de coleta de informações e desvio de material bélico. Nesse período houve inúmeras ações. Com expropriação das armas do 4º Regimento, em 24 de janeiro de 1969, entramos para a clandestinidade. Houve uma série de prisões. Lamarca organizava as ações no campo e eu na cidade. Isso foi até a formação da VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares) - uma organização política. O Lamarca foi para o Vale do Ribeira e eu fui com ele. Caí numa emboscada e fui preso com outro companheiro, até ser trocado por um embaixador. Fui para a Argélia e depois para Cuba, onde fui professor por 10 anos. Lamarca ficou meses sem participação em ações e resolve ir para o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro - organização política de ideologia comunista que participou da luta armada) até ser morto na Bahia.

Diário – O senhor ficou preso aonde?
Rodrigues –
Fiquei no Vale e fui usado pelo Erasmo Dias e seus comandados como refém nas patrulhas para tentar capturar o Lamarca. Eles morriam de medo de um confronto com ele e me usavam para evitar tiroteio. Lamarca atirava como ninguém e era altamente fiel aos seus ideais e aos companheiros. Fiquei preso 58 dias. Primeiro na Rua Tutóia (Prédio do DOI-CODI Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna, considerado um dos maiores centros do tortura do regime militar, palco de prisão de cinco mil, das quais 50 foram assassinadas) e depois num prédio da Operação Bandeirante (OBAN) - centro de informações e investigações montado pelo governo do Estado de São Paulo e pelo Exército.

Diário – Falar sobre tortura atenua seus traumas?
Rodrigues –
Eu era conhecido como o braço direito do Lamarca. Eles (militares do regime) não admitiam uma postura de oposição. No DOI-CODI tinha três equipes de tortura. O chefe de uma delas foi até processado pela ex-presidente Dilma Rousseff. Os caras viravam bicho quando torturavam ex-militares. Um ódio mortal. Lembro do nome de todos. Chegaram a me torturar quatro vezes num único dia. Sofri tudo o que se imagina de agressões físicas, pau de arara, choques e outros, que acarretaram sequelas. Na OBAN foi a mesma coisa.

Diário – O que faz uma pessoa suportar tamanha agressão física e psicológica?
Rodrigues –
Primeiro você pensa em se matar para se livrar do martírio e eu tentei várias vezes. Depois, você passa a acreditar que dá para resistir aos maus tratos. No fim, você coloca na cabeça que tem que sobreviver. A gente não perde a consciência, apesar de ter a sensação que vai morrer a qualquer momento. No final, você fica mais convencido de seus ideais e passa a suportar tudo. Na verdade, eu tive vergonha na cara, não trai a causa e nem delatei companheiros. Se fosse o contrário, não teria paz de espírito, não conseguiria me olhar no espelho. Essa consciência você desenvolve na dor, na luta pela sobrevivência.

Diário – O senhor se arrependeu de ter lutado?
Rodrigues
– Cumpri meu papel. Ter uma causa significa que você não passou em branco em vida. Não me arrependo e faria tudo de novo. O Lamarca dizia que o Brasil não precisava de heróis, mas de pessoas que busquem transformar a sociedade.        

Diário – O senhor acha justo torturadores estarem vivendo como se nada tivessem feito?
Rodrigues –
O torturador é um doente. Não se pode imaginar que um ser pratique tamanha crueldade em sã consciência. Numa de minhas visitas ao Hospital Militar do Cambuci após a anistia, me deparei com um homem, numa cadeira de rodas, tentando subir uma rampa. Eu vi um ser humano com dificuldades e fui ajudá-lo. Ele levantou a cabeça e começou a chorar. Tratava-se do coronel Otoniel Rodrigues Aranha, um dos que me torturou dentro do Exército. Ele me perguntou se eu o ajudaria a subir. Quando chegamos na parte de cima, eu virei as costas e ouvi ele gritar o seguinte: “Sobre nossas cabeças paira uma maldição. Estamos morrendo de AVC (Acidente Vascular Cerebral) e câncer”. Eu sempre lutei pela sociedade. Eu individualizo e presto homenagem aos meus companheiros de luta. Prefiro esquecer meus adversários.

Diário – Como o senhor analisa a atual situação brasileira?
Rodrigues –
Estamos na mistanásia que é a morte social, em que os pobres, por exclusão social e econômica, não têm acesso ao essencial para a sobrevivência, aos cuidados de saúde, levam vida sofrida e morrem prematuramente. Quem tem poder só o aumenta e, quem não o tem, sucumbe. Temos que reagir, se organizar, adotar critérios mais rígidos na escolha de nossos governantes e criar um Estado forte e que cuide do bem comum.        

 

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