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Cotidiano

Papo de Domingo: ‘O que nos une é mais forte do que o que separa’

“Que a gente não celebre somente a tolerância e sim a aceitação”, afirma José de Abreu, um dos responsáveis pelo movimento regional que pretende unir diversas religiões

Vanessa Pimentel

Publicado em 22/01/2017 às 10:30

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Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi comemorado ontem / Rodrigo Montaldi/DL

O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi comemorado ontem. Para celebrar, o Movimento inter-religioso da Baixada Santista se reuniu no Centro Cultural Israelita Brasileiro e conversou sobre o assunto. A organização existe há 13 anos e engloba em torno de 17 comunidades religiosas.

“O objetivo das nossas reuniões é manter o diálogo entre as religiões. Temos representantes da religião evangélica, do islamismo, do candomblé”, explica José da Conceição de Abreu, um dos responsáveis pelos encontros.

Além da diversidade do povo, o Brasil abriga diversas crenças que norteiam a fé, mas carrega na história casos marcantes de intolerância religiosa. Um dos mais fortes ocorreu em 1999, quando um jornal publicou uma reportagem acusando o Candomblé de charlatanismo. Na época, algumas pessoas invadiram a casa de Gildásia dos Santos e Santos, a mãe Gilda, e destruíram seu terreiro.

Com o intuito de coibir outras atitudes discriminatórias e, como um ato em homenagem à Mãe Gilda, que faleceu pouco tempo depois da invasão, foi sancionada em 2007 a Lei nº 11.635, que fez do 21 de janeiro o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.

Um caso mais recente aconteceu em junho de 2015, no Rio de Janeiro. Uma menina de 11 anos, praticante de Candomblé, foi apedrejada na cabeça e insultada por dois homens que seguravam bíblias na mão. O fato despertou a atenção do público para o tema no Brasil e, principalmente, para o preconceito contra as religiões de matrizes africanas.

O jornal Diário do Litoral entrevistou alguns membros do Movimento inter-religioso da Baixada Santista para um panorama sobre o cenário regional. Silvio Naslauski é representante do judaísmo; Simone Cruz se apresenta como Egbomy Obasyi e representa o Candomblé e o Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira (INTECAB – Baixada Santista); Imar Lopes e Maria Sueli Bueno falaram em nome da comunidade cigana e Jose de Abreu em nome do Kardecismo (espiritismo).

Diário do Litoral – Para vocês, ao que se deve o preconceito contra as religiões?

Silvio Naslauski - O preconceito existe pela ignorância das pessoas. Geralmente o preconceituoso é um ignorante e um covarde porque ele vê no outro aquilo que ele queria ser e não tem coragem. É assim que eu enxergo o preconceito. O ateu também precisa ser respeitado. Eu não preciso acreditar em nenhuma outra fé, mas eu preciso respeitar todas elas.

DL – As pessoas sabem diferenciar judaísmo, islamismo e extremismo?

Silvio - O judaísmo é a primeira fé monoteísta (a crença na existência de apenas um Deus). A partir do judaísmo é que surge o cristianismo e o islamismo. Algumas pessoas tem preconceito com essas religiões por achar que elas são responsáveis pelas guerras no Oriente Médio. É um erro achar que a guerra é religiosa. Ela é política e não acaba porque a indústria da guerra é lucrativa. Lá em Israel, existem movimentos entre islâmicos e judeus pela paz. O judaísmo não é somente uma religião, é um conceito de nação.

DL - Algum de vocês já presenciaram casos de intolerância religiosa?

Silvio - Pessoalmente não, mas a sinagoga aqui em Santos já teve os vidros quebrados. Não posso afirmar que foi intolerância, mas aconteceu.

Simone Cruz - O candomblé é uma religião que não tem sexo, não tem preconceito com origem nenhuma e onde o branco entrou e foi bem vindo porque essa religião nasceu dentro dos navios negreiros, os escravos trouxeram a cultura dos orixás. Quando falo candomblé, o que ouvimos é macumbeira. Eu ando vestida assim (enquanto mostra o traje em tecidos coloridos, típicos da África). Isso aqui não é a roupa da minha religião, é a roupa dos meus antepassados e da minha descendência africana. Antes, algumas pessoas só de ver o torso na cabeça (turbante), já gritavam macumbeira, hoje é moda. Eu atuo muito em Santos e nunca ouvi casos de ataque religioso ao candomblé. Nós temos nossa festa de Iemanjá que acontece dia 2 de fevereiro e atrai adeptos e não adeptos da religião. A intolerância é grave fora dos nossos portões. Dentro, nós estamos a frente, posso assegurar isso.

DL - Dados mostram que as religiões afrodescendentes são as que mais sofrem ataques...

Simone - Não é a religião, é o racismo. Todo negro que se veste com a sua cultura é visto como macumbeiro e as pessoas nem sabem o que é macumba, quiumba. Quiumba é quem faz o mal e o candomblé não é uma religião que está para fazer o mal, é uma religião que ajuda o ser humano a religar porque toda religião tem o religar: quem sou, de onde venho e para aonde vou. Então, não é o candomblé que sofre, é o racismo do nosso país, que é o país com mais negros fora os Estados Unidos, mas olha para o negro e acha que é mal. Aquela história onde o “preto é mal”, ou “o lado negro”. Tem a “inveja branca” e a “inveja preta”. “Ah, a inveja branca é aquela inveja boazinha”. Me explica, como que é isso? A religião acaba sofrendo, mas a causa é o racismo.

DL - Sabe dizer se algum centro já foi atacado na região?

Simone - É engraçado, as pessoas não atacam diretamente os centros porque tem medo. Elas atacam por outro lado, por exemplo, a parte dos sacrifícios de animais, porque como é uma religião antiga, ainda tem. Então vão nas leis contra o abate de animal e atacam politicamente, na bancada.

DL – Como as pessoas enxergam a comunidade cigana?

Imar Lopes - Nós não somos uma religião, somos uma raça, uma cultura, uma etnia, mas fazemos parte do movimento religioso porque ele nos acolheu. O preconceito existe e é mascarado. Somos pessoas normais, com a diferença que somos mais livres, um povo sem pátria. A nossa pátria é onde vivemos. Porém, temos uma tradição e um dialeto próprio e precisamos ser respeitados. Os encontros inter-religiosos abriram as portas para que a sociedade nos visse de forma um pouco melhor.

DL - Como se nota o preconceito aos ciganos?

Maria Sueli- Uma vez estava na praça em São Vicente e uma moça puxou os filhos para longe de mim. Eu falei: “moça, eu não quero os seus filhos, eu já tenho os meus”. Tem ainda esse preconceito de que ciganos pegam crianças. Tem preconceito contra as ciganas que leem a mão. Elas estão ali para ganhar o hadem dela (hadem é dinheiro), é o leite do filho. Os homens ciganos fazem outros tipos de serviços. A nossa vestimenta tem a ver com a índia. É um pouco de cada lugar por onde um cigano passa. O lenço no cabelo mostra que a mulher é casada, é sagrado. Ah, nós também levamos fama de macumbeira! (risos)

DL – E o espiritismo, sofre preconceito?

José de Abreu - O homem cria as suas próprias barreiras quando tem preconceito. Ainda existe muitas pessoas que por não conhecerem são irônicas com a tese da reencarnação e a ironia é uma forma de preconceito.

DL - Para vocês, existe mais preconceito entre os religiosos ou entre os que não têm religião?

Silvio - Entre os não religiosos não existe tanto preconceito. Dificilmente você vê um ateu tendo preconceito. O preconceito está tão incubado na mente do brasileiro que nós usamos palavras de origens preconceituosas como denegrir e judiar, ou seja, tratar mal como um negro ou um judeu. O ser humano sempre tem algum preconceito, mas ele não tem o direito de mostrar esse preconceito.

Simone - O preconceito acontece mais entre pessoas religiosas porque um aponta a religião do outro para ter mais poder. Um quis, um dia, ser melhor do o que outro. Hoje, a gente quer unir, mas um dia quiseram separar, mas nós vamos trabalhando, nós não desistimos, apostamos nas crianças, nas leis como a Lei 10.639 que é o ensino da africanidade nas escolas. Várias já ensinam a cultura negra, então acho que é por aí. Um dia nós vamos vencer.

DL - Para vocês, a internet propaga mais a paz ou o ódio entre as religiões?

José - Hoje, a internet é uma peça chave para a evolução humana, mas temos que filtrar aquilo que recebemos. Quando eu recebo alguma coisa desrespeitosa, eu excluo.

Simone - Às vezes, as pessoas dentro das suas próprias religiões usam a internet contra elas mesmas. Tem casos de pessoas que filmam as cerimônias, atos que não devem ser gravados e colocam na internet no intuito de difamar a religião.

DL - O tema da redação do Enem 2016 foi Intolerância Religiosa. Para vocês, qual a importância de se discutir sobre o assunto com os jovens?

José - Milhões de jovens participaram do Enem e discutir isso ajuda a inseri-los num mundo que, às vezes, ele evita. Achei genial a ideia porque fez o jovem pensar sobre o assunto. Foi um avanço.

Imar - Nós fomos convidados para uma palestra na USP (Universidade de São Paulo) e quando chegamos lá, eu fiquei assustada porque falar com jovens não é fácil. Eu entrei com medo, mas no fim fiquei surpresa em notar o interesse deles de querer saber de tudo, da cultura, tanto da comunidade negra como dos mulçumanos, dos ciganos e dos indígenas. É importante também que o Enem ressalte o preconceito a religiões porque no nosso país o preconceito ainda é mascarado para fingir que é bonito.

DL – É possível notar uma falta de jovens nas ­religiões?

José - Para o movimento espírita existe realmente uma falta de jovens, mas não se discute e deveria se falar nisso. Ainda existem grandes encontros de jovens pelo Brasil, mas há realmente uma interrogação sobre a falta deles nas religiões. Quando é criança, existem aulas de evangelização, mas porque quando ele chega na juventude, ele não se fixa? É uma interrogação.

Simone - No candomblé, como manda a tradição, os filhos são iniciados dentro da barriga. A criança tem que seguir os preceitos da religião. Meu filho quando tinha seis anos já se iniciou. Hoje, ele tem 18. Isso é bom para não ter conflito dentro de casa com religiões paralelas. O candomblé é uma religião onde existe hierarquia, eu respeito o meu mais velho. Essa educação se transfere para dentro de casa. O candomblé ainda é uma religião que tem bastante crianças e jovens. É um ciclo.

DL- Mas quando os filhos crescem, caso não queiram mais fazer parte da religião, a vontade deles é respeitada?

Simone - Sim, com certeza. Depois ele pode seguir o caminho dele, mas a sementinha está lá dentro plantada, ele vai saber respeitar.

Silvio - O judaísmo sente muito o jovem se afastando. Hoje, com todas as informações que ele tem, ele questiona os dogmas e uma religião dogmática como o judaísmo não passa por uma grande evolução, continua como há cinco mil anos atrás. Então, hoje em dia já existe o judaísmo liberal, o judaísmo reformista em que os dogmas são deixados um pouco de lado e se aceita algumas coisas que não eram aceitas antes, justamente para trazer os jovens.

DL – Digam uma mensagem para celebrar a data.

José - Que a gente não celebre somente a tolerância e sim a aceitação. Se nós buscarmos a definição de todas as religiões é amai-vos uns aos outros.

Silvio - Menos dogmas e mais espiritualidade.

Simone - O que nos une é mais forte do que o que nos separa.

Imar - Amor entre os povos, porque foi isso que o Cristo nos ensinou.

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