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Artigo - Pra não dizer que não falei das flores

Rutinaldo da Silva Bastos

Publicado em 09/03/2023 às 14:17

Atualizado em 09/03/2023 às 14:20

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Rutinaldo é vereador em Itanhaém / DIVULGAÇÃO

Eu gosto de Simone de Beauvoir. Aliás, sempre gostei de ler e ouvir mulheres cuja palavra e história de vida tenham sido bússolas à resistência pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. Simone foi e é uma leitura para lá de fundamental àqueles que se propõem a refletir de maneira honesta e minimamente embasada sobre a luta histórica das mulheres para a obtenção de direitos. Mas falei dela apenas dizer que não se trata o “Dia da Mulher” de algo construído a partir de um fato isolado, mas de uma penosa caminhada que, para além das concepções do feminismo, serviu a revelar o atraso do pensamento humano quanto às valiosas contribuições sociais que a igualdade de direitos entre homens e mulheres resulta para o progresso da humanidade. Às mulheres, neste dia, não ofereço flores. Ofereço o convite a uma breve análise sobre as estruturas políticas do Brasil que, mesmo depois da chamada “reforma política”, ofereceu muito de coisa nenhuma quanto à efetiva ocupação de espaços de poder pelas mulheres brasileiras. 

Com relativa frequência, ouço dizer que a necessidade do percentual de 30% para candidaturas femininas é uma dificuldade para os partidos, já que “as mulheres não gostam de política”, que “não têm interesse eleitoral” e que “mulher não vota em mulher”. Quando sinto que vale um debate, dou uma de Sócrates e começo a fazer perguntas ao interlocutor, numa tentativa de desnudar a mentira. Ao revés, quando vejo que a afirmação nasce apenas do desconhecimento das estruturas eleitorais e da incompreensão da realidade sociológica das mulheres no Brasil, simplesmente faço “cara de paisagem”, não esboçando qualquer reação, deixando que as “pérolas” sigam para o vácuo.

As mulheres gostam de política, sim. Infelizmente, por conta da nossa tradição patriarcal, não temos uma cultura brasileira de participação política feminina, o que não significa ausência de participação ou de influência. Durante o regime de exceção, por exemplo, foi das mulheres a voz mais estridente na luta pelos filhos desaparecidos, organizando movimentos e atuando fortemente no combate às violações de direitos. As organizações políticas das mulheres por aqui resultaram em mudanças estruturais tanto nas organizações e movimentos sociais em relação às pautas feministas como nos direitos sociais e políticos assegurados por lei. A Lei Maria da Penha é exemplo disso. Logo, falar que mulher “não gosta de política” não é só atestar ignorância, mas utilizar a ignorância como álibi para silenciar ideais e invisibilizar tantas mulheres que morreram para que a sociedade brasileira pudesse ser um pouco melhor para todos nós.

Outro ponto: as mulheres têm interesse eleitoral, sim. A respeito disso, lembrei-me de uma animação de 1983 feita pelo Studio J. Trnka Kratky Films em coprodução com a ONU (assistam!) que retrata o 'Sonho impossível' de mulheres cuja dupla jornada de trabalho as transforma em prisioneiras de uma vida familiar de obrigações. Ainda hoje é assim. Quando a mulher decide entrar para a política as resistências familiares são grandes, ao que se aliam as obrigações de mãe e esposa que não encontram trégua, fazendo com que o “sonho da política” se torne “impossível”, ante a ausência de apoio já dentro de casa.

Relativamente à legislação brasileira, melhorou. Mas o assunto não pode se resumir a cotas de candidaturas. É preciso garantir cota, sim, mas de efetiva ocupação dos espaços de poder por mulheres, além de recursos econômicos a candidaturas femininas com distribuição igualitária do dinheiro, não deixando que somente os partidos decidam para qual mulher vai e para qual não vai o dinheiro das campanhas. O número de mulheres na Câmara dos Deputados não chega a 20% dos parlamentares. É pouco. Para o Senado, na última eleição, apenas quatro mulheres foram eleitas. Garantir cota de cadeiras e dinheiro para a formação de quadros políticos femininos com reais condições de representação é um dever de partidos políticos sérios cujas ações estejam ao encontro das palavras que costumamos ouvir.

Em Itanhaém, não temos mulheres na Câmara. Será que mulher não vota em mulher? Os partidos, no geral, não investem em lideranças femininas. Itanhaém possui inúmeras mulheres competentes, de maneira que não haveria para não termos nenhuma representante feminina no Legislativo Municipal. A questão é saber quanto cada partido investiu, de maneira específica e individualizada, em cada candidatura feminina. Aqui, acredito que caiba às mulheres não se deixarem ser utilizadas para “cumprir cota”. Se a presença feminina nas chapas eleitorais é determinação legal, que sejam as mulheres respeitadas como lideranças e que em suas campanhas sejam feitos os investimentos necessários à dignidade da causa feminina para que sejam eleitas pessoas que, para além do gênero, tenham perspectiva de gênero. Em outras palavras, sejam eleitas pessoas que entendam de direitos femininos e defendam com propriedade e destemor as pautas femininas. Eleger quem desconhece a causa não contribuirá para a mudança do cenário. Traduzindo: precisamos de mulheres que pensem e ajam pelo desejo de construir um espaço de poder definitivo como legado às gerações de hoje e de amanhã.  

Mas, retornando ao “Dia da Mulher”, importante nos lembrarmos também da lição de Stuart Mill que escreveu em 'A sujeição das mulheres' que a subjugação de um sexo a outro deva ser “substituída por um princípio de igualdade perfeita, sem qualquer poder ou privilégio para um lado” já que a desigualdade existente cria “um dos principais obstáculos para o desenvolvimento humano”, se convertendo em atraso para a humanidade. Assim, no Brasil de hoje, penso que o 'Sonho impossível' do passado só se tornará realidade quando as flores das homenagens à beleza feminina forem as de Geraldo Vandré, numa conclamação para que todas as mulheres não esperem mais a hora e façam acontecer, transformando o sonho impossível do vídeo de 1983 na rosa da igualdade política a brotar no asfalto do sectarismo estrutural e covarde da política de apartheid que vigora silenciosamente contra as mulheres brasileiras.

* Rutinaldo da Silva Bastos. É advogado militante e professor universitário de Direito. É Bacharel em Direito, Especialista em Direito Processual Civil, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e Licenciado em Filosofia. É vereador na cidade de Itanhaém.

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