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Cotidiano

Livro relembra 20 anos da tragédia no show dos Raimundos no Regatas

Perto de completar 20 anos do acidente, o jornalista Sérgio Vieira lança a obra 'Raimundos - O show que nunca terminou'. Leia no Papo de Domingo

Pedro Henrique Fonseca

Publicado em 22/10/2017 às 10:27

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Segundo o jornalista, a impressão é que a cidade esqueceu da tragédia / Rodrigo Montaldi/DL

8 de novembro de 1997. Oito vítimas fatais e, passados 20 anos, um sentimento: o esquecimento. No show de abertura da turnê de divulgação do disco "Lapadas do Povo", a banda Raimundos, a cidade de Santos e cerca de seis mil presentes testemunharam um dos capítulos mais tristes de suas vidas: a tragédia no ginásio do Clube de Regatas Santista. Ao término da apresentação, somente uma escada estava disponível para que os fãs deixassem o local. Com o tumulto formado no acesso à escada, os corrimãos cederam e centenas de jovens caíram, uns sobre os outros, de uma altura de cinco metros.

No livro "Raimundos - O show que nunca terminou", o jornalista Sérgio Vieira transporta os leitores aos momentos que precederam ao acidente e explica em detalhes tudo o que aconteceu - e o que poderia ter sido evitado - naquele fatídico dia. Na obra, o autor apresenta questionamentos importantes: como um clube que não tinha o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB) possuía Alvará de Funcionamento da Prefeitura de Santos?

Além disso, o livro retrata o sentimento de esquecimento por parte das famílias das vítimas. Um livro, como ele mesmo diz, dedicado às memórias de Rodrigo, Leandro, Luiz Roberto, José Renato, Bárbara, Pablo, Camila e Alex.

Livro traz imagens do exato momento do acidente (Foto: Gisele Monteiro de Paulo/Fã que estava no show/Reprodução)

Leia a entrevista completa com o autor no Papo de Domingo:

Diário: Quando surgiu a ideia de escrever um livro sobre um assunto tão delicado para a Cidade?

Sérgio Vieira: Em julho, quando começaram a surgir as notícias de 10 anos do acidente da TAM. Eu me lembro bem, eu cobri, era repórter e imediatamente me veio a lembrança da nossa tragédia, que foi o acidente do Regatas. Fiz uma rápida pesquisa e constatei que completaria 20 anos. Com a vontade que eu já tinha de escrever um livro, veio a percepção de que a cidade, de alguma forma, tinha esquecido essa tragédia. Não dá a devida homenagem, não faz a devida referência a esse episódio e nem às consequências dele. Santos, como um todo, tem a obrigação de trazer de volta esse assunto, agora que vai completar 20 anos.

Diário: Os familiares partilham desse sentimento de esquecimento?

Sérgio: Dos oito jovens que morreram, cinco mães e dois pais me concederam entrevista. Eles tinham a absoluta convicção que de fato a Cidade os esqueceu. É claro que a dor é delas, mas não há qualquer menção, não há um memorial, um ato, não há nada para eles. Nem o clube. Então para esses familiares, e na minha percepção, a cidade esqueceu essa tragédia.

Diário: O contato com as famílias é o momento mais tocante do livro?

Sérgio: É. O livro se divide em três partes. Na primeira parte eu procuro transportar o leitor imediatamente para a cena da tragédia e para o momento de terror que os jovens viveram. Num segundo momento, uma etapa mais documental, onde trago laudos, as ações do Ministério Público e os depoimentos à Justiça. E, na terceira, trago os depoimentos de quem esteve perto dessa tragédia, quem por muito pouco não virou vítima fatal e os pais. Por mais que seja um tema difícil, a receptividade das famílias foi algo que me tocou. Eu digo que esse livro na verdade, é uma homenagem a essas oito vítimas. Tanto que eu dedico na primeira página à memória dos oito. Então, é algo muito difícil você abordar o familiar, você trazer a confiança dele para ele entender que é um livro de resgate.

Diário: E como foi esse contato?

Sérgio: Eu tive contato com familiares das oito vítimas e todas ficaram emocionados com a possibilidade de trazer de novo esse assunto à sociedade. Foram todos depoimentos de mais de uma hora e sempre preenchidos com muito choro. Conseguir fazer com que elas falassem, foi quase como uma sessão de terapia para as famílias. Foram conversas lindas. Foram conversas emocionantes e depoimentos ao mesmo tempo de muita tristeza e de muita força. Então eu acho que o ponto alto do livro são os depoimentos das mães principalmente pelo que elas dizem, pelo sentimento que elas trazem. Pelo que representou aquela madrugada para elas.

Diário: E o contato com os responsáveis pelo evento?

Sérgio: Não foi fácil. A direção do Regatas foi talvez a parte mais difícil de conseguir falar. Foi um mês de negociação para conseguir a palavra do presidente atual do clube. O Reinaldo Gomes Ferreira, presidente da época, não quis falar e eu respeitei. O presidente atual, José Alves Ferreira, me respondeu 15 perguntas por e-mail. Além dele, o promotor do evento, Carlos Alessandro Prozzo, que era o presidente da Rockstrote, que foi a empresa que fez o evento, nunca havia dado uma entrevista sobre o assunto e ele topou falar comigo. Foi um depoimento de 57 minutos em que ele diz tudo que ele pensa sobre o acontecido. O prefeito era o Beto Mansur, e eu optei por usar o depoimento que ele deu na época. Por que? Porque na minha concepção, não faz a menor diferença o que ele pensa hoje. Para mim o que importa foi o que ele disse e como agiu em 1997.

Diário: O que aconteceu após o acidente? Ele poderia ter sido evitado?

Sérgio: Como sempre, quando tem uma tragédia, há uma espécie de satisfação à sociedade e um mês depois, Prefeitura e Câmara mudaram algumas regras no Código de Postura, que se tivesse sido feito antes talvez pudesse ter evitado o acidente. Na verdade, bastava que tivessem fiscalizado. O Auto de Vistoria do Regatas estava vencido desde fevereiro de 1996. O show do Raimundos foi em novembro de 1997. Ainda assim o clube tinha Alvará de Funcionamento. Só que para ter alvará precisa ter o laudo do Corpo de Bombeiros. Então, o Poder Público se movimentou depois.

Diário: Há uma parte do livro dedicada aos documentos e imagens da época?

Sérgio: No livro há uma sessão em que eu mostro documentos e imagens importantes como o Boletim de Ocorrência, o laudo vencido, o alvará de funcionamento e o contrato de locação. Tudo está lá no livro. Esses documentos nunca foram mostrados. Tem uma sequência de fotos que mostram como as pessoas tiveram que sair do local, por exemplo. Então, a perícia do técnico do Ministério Público é muito clara. São mais de 100 páginas onde ele detalha todas as irregularidades, as escadas, a situação e principalmente mostra com documentos que uma porta foi aberta para 6 mil pessoas.

Diário: Somente uma escada foi aberta? Só havia uma saída?

Sérgio: Sim. A escada número 1. A escada ao lado dela foi usada por pouquíssimas pessoas. Ela era fechada porque o palco ficava em frente e ali ficava um segurança. A porta do outro lado, sentido Canal 7, era uma espécie de 'bota-fora'. Ali tinha entulho, tambor, varal, tinha tudo ali. E na porta anterior a essa, eles fizeram um estacionamento VIP. Ali estavam os carros dos diretores e do pessoal da banda. Então, a preocupação do clube era a evasão, para que não entrasse gente que não havia pago e defender o patrimônio do clube. Por isso decidiu-se só uma porta aberta para 6 mil pessoas. Para que elas não tivessem acesso a outras partes.

Diário: E sobre as indenizações às famílias?

Sérgio: Na conversa com uma das mães eu fiz a seguinte pergunta: 'Saiu a sua indenização? E qual o valor?'. A mãe, com muita propriedade, me disse algo que mudou a minha condução das entrevistas: 'Você pode me perguntar tudo o que você quiser. Menos isso, porque isso é extremamente doloroso para mim. Nós ganhamos a ação, mas nada disso trouxe meu filho de volta'. Então, eu percebi que naquele momento a indenização não fazia a menor diferença. As mães ganharam a ação, mas como uma delas me disse, isso não tem importância. Nada paga a dor delas.

Diário: Os envolvidos diretamente na tragédia foram condenados?

Sérgio: A sentença do caso é vergonhosa. Foram condenados em segunda instância o presidente do clube na época, Reinaldo Gomes Ferreira, e o Carlos Alessandro Prozzo. Eles foram condenados a prestação de serviços comunitários e a entrega de cinco cestas básicas cada um. As oito mortes valeram 10 cestas básicas. Isso não pode ser esquecido.

Diário: Como foi o contato com a banda 20 anos após o acidente?

Sérgio: Para a banda também foi muito triste. Eles sofreram muito. Ainda estavam no clube quando um membro da equipe avisou que havia acontecido a tragédia. Eles se comoveram, se preocuparam, participaram da missa de um ano, celebrada pelo Frei Rozântimo, no dia 8 de novembro de 1998, no Valongo, e também das vigílias que as famílias faziam na porta do Regatas. O vocalista e guitarrista Digão revela que esse episódio trouxe a ele a memória de uma outra grande tragédia de sua vida: a perda do irmão em um acidente de moto. Ele considera que esse episódio tem o mesmo peso da perda do irmão.

Diário: Ao mesmo tempo em que o acidente parece ter sido esquecido, muitas pessoas ainda têm muito o que falar sobre esse dia.

Sérgio: Esse é um caso em que todos da Cidade têm alguma ligação. Ou tem um amigo que foi no show, ou foi no show, ou tem um amigo de um amigo que se acidentou, enfim, todo mundo tem uma história para contar. Isso ficou claro para mim na postagem em que fiz no meu Facebook falando do livro e que mostrou a necessidade das pessoas de falar sobre esse acidente. Na postagem tem personagens maravilhosos que já dariam um outro livro, só contando os momentos que viveram. Isso para mim comprova a percepção de que esse caso estava esquecido. A cidade procura esquecer esse caso. A única lembrança deste episódio é a dor das famílias. Esse livro então passa a ser um memorial sobre esse assunto.

Diário: E qual o seu sentimento em relação a esta obra?

Sérgio: Eu considero essa a reportagem mais importante da minha vida pelo o que ela significa para as mães e pelo que ela vai significar para a história. Em 20 anos de carreira, tenho muito orgulho de tudo o que eu fiz, de todas as reportagens, mas nenhuma se compara a essa. Eu terminei esse livro muito satisfeito e com uma mistura de sentimentos. Eu me sinto extremamente feliz de ter dado essa contribuição à Cidade. Há uma geração que não conhece essa história, mas a geração que conhece tem obrigação de falar sobre esse caso. As autoridades têm a obrigação de debater a segurança nas casas noturnas, como o Poder Público tinha que ter homenageado essas mães de alguma forma, como um pedido de desculpas. Mas elas nunca sequer foram recebidas na Prefeitura de Santos.

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