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Cotidiano

Teatro resgata a história da antiga Vila Parisi, em Cubatão

Jovens organizam pesquisas e entrevistas sobre extinto bairro

Lincoln Spada

Publicado em 17/07/2019 às 07:30

Atualizado em 31/07/2019 às 19:22

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O projeto foi contemplado pelo Governo Estadual via Programa de Ação Cultural, em 2018 / Matheus Cordel

O ar grafitava as roupas da família de dona Marta, em sua infância na antiga Vila Parisi. O varal de peças cinzas era a menor das consequências de viver às margens do polo industrial de Cubatão, no bairro que entre as décadas de 50 e 80 foi apontado como o mais poluído do planeta.

"A gente observava pela janela se havia mesmo um homem que virava lobo à noite", relata Marta sobre a infância rodeada por cobras mamíferas, loira do banheiro e até a aparição do bebê-diabo na cidade. Nenhuma lenda infelizmente era tão arriscada quanto o acesso direto aos poluentes lançados pelas fábricas.

Marta nasceu no bairro. E com bronquite. Outros de seus 13 irmãos tiveram o mesmo infortúnio de problemas respiratórios, "apesar de naqueles tempos considerarem que a fumaça das indústrias simbolizarem sucesso", comenta a assistente de produção de 'Vila Parisi', Allana Santos.

Memória oral

Com o ator Sander Newton, Allana registrou uma visita à casa de Marta em 2018. A entrevistada até então nunca foi ao teatro. Os dois jovens do Coletivo 302 também não conheceram a Vila Parisi. A companhia de uma tarde é parte de um acervo de memória oral e pesquisas do grupo cubatense para dar contornos cênicos ao cotidiano retratado por mais de 20 antigos moradores do bairro.

As três gerações que cresceram nos 400 mil m² de área de mangue aterrado se tornaram interesse do coletivo a partir do trabalho acadêmico de Sander. Especializado em Fotografia pela UEL, abordou como as fotografias de décadas atrás criaram um imaginário coletivo que estigmatizou a cidade, embora fosse sinônimo de recuperação socioambiental anos depois.

O projeto teatral foi contemplado pelo Governo Estadual via Programa de Ação Cultural, em 2018 - o Coletivo 302 é o único que já teve projetos selecionados pelo ProAC na Cidade desde 2016. Pronto, logo o diretor e ator Douglas Lima se muniu de banquinho, caderneta e lousa no meio da Avenida Nove de Abril a fim de histórias sobre o fatídico bairro.

Do dia na via (28 de julho de 2018) até a estreia da peça (13 de julho de 2019), o calendário rendeu um ciclo de estudos de dramaturgia e cenotecnia que o grupo abriu para a população. No Galpão Cultural receberam, por exemplo, a figurinista Telumi Hellen e o cenógrafo José Carlos Serroni. Enquanto isso, tinham a orientação de Eliana Monteiro, além de Cícero Gilmar Lopes e Marcelo Ariel na dramaturgia da peça.

Álbum de alegrias

"É um desafio basear o nosso olhar, que tinha uma imagem sobre o bairro, com o de seus ex-moradores", descreve Allana. "Por mais que fosse um lugar precário, as pessoas tinham boas recordações, foram felizes. Era melhor a Parisi onde havia trabalho do que as suas cidades natais".

A vila era uma minicidade de 15 mil habitantes. Não à toa há contos sobre escolas, igrejas e terreiros, e até do seo Bill que fazia sessões caseiras de cinema via fitas VHS. Ali, a maioria era de famílias e pousadas de trabalhadores, mas também existia quem preferisse a boemia de bares e prostíbulos em dias de pagamento. Era tão isolado que "ir para Cubatão" significava rumo ao centro da cidade.

A prefeitura doava enxovais e festividades. O último show de Parisi foi de Roberto Carlos em 1992 - até Marta estava com as filhas no meio da multidão. O lazer se resumia às brincadeiras de rua, rios, bananeiras e o campo onde duelavam o E.C. Belmonte e o E.C. Vera Cruz.

Refúgio e dores

O acervo de entrevistas do Coletivo 302 guarda as lembranças do cearense Expedito Silva, falecido neste ano. "Atravessei 52 horas de ônibus com amigo até Cubatão. Chegamos na segunda, na terça estava empregado". Como ele, milhares ergueram a própria casa como refúgio do desemprego ou do sertão nordestino. Problema mesmo se tornou as costumeiras enchentes. A mais forte, de 1971, gerou mortes e desabrigados - estes, espalhados em ginásios e cinema.

As águas foram hostis à população: faltava esgoto, cresciam chuvas ácidas. Um vazamento de amônia em 1985 desencadeou na evacuação de um terço da vila. Também em um terço dos moradores tiveram alteração no sangue por causa da poluição - mais suscetíveis às doenças cardiorrespiratórias. Pelo menos, 17 casos de crianças anencéfalas. Quando não era o ar, era a ausência de segurança do trabalho: por exemplo, Expedito perdeu parte da audição.

A recuperação da Serra do Mar e de melhores condições no clima e se deu em amplo programa público de sensibilização junto às indústrias em 1985, quando também foi decretada a remoção dos moradores da Vila Parisi. Encerrada em 1992, o bairro tem as suas memórias levantadas pelo Coletivo 302.

O elenco também conta com os atores Alisse Ribeiro, Julia Transeunte, Letícia Luz, Matheus Lípari, Maya Andrade, Sandy Andrade, Tamirys O'Hanna, e os músicos Jaqueline da Silva, Marcozy Santos e Rodrigo Suzuki.

Em parceria com a U[z]ina Utópica e o Teatro do Kaos, o grupo inicia este mês a sua temporada no Cruzeiro Quinhentista. Com distribuição de ingressos às 19 horas, as sessões são às 20, aos sábados e domingos, até 13 de agosto. Classificação indicativa de 14 anos. 

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