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Valle Tudo

A primeira vez de um amigo no estádio

Ele chegou a acreditar que ali não era um espaço dele. Porém, o desejo de se manter próximo das grandes manifestações populares do nosso país nunca deixou que se afastasse por completo dessa paixão.

Anos de uma certa distância, um ensaio ao longo de alguns meses, até que em maio de 2023, em um Corinthians e São Paulo na Neo Química Arena, ele se viu ali, na essência de um campo de jogo.

Daqui para frente, o que será relatado é o mais puro futebol, construído por mãos, pés e cabeça dos homens, com suas maravilhas e falhas imperdoáveis dissolvidas num ambiente hostil, violento e criminoso, envolto de paixão.

Se o desejo de estar inserido no futebol é antigo, podemos dizer que a admiração pelo Corinthians é recente. E começou com um livro que explica para quem pouco conhece a louca obsessão pela instituição.

Nenhum movimento até a ida à casa do Timão foi brusco ou forçado. Um romance construído aos poucos, que chegou ao ápice na materialização de um retorno ao espaço que poderia ter sido ocupado desde a infância: um estádio de futebol.

O relato quase infantil de um homem feito, ao ver de perto um campo ocupado por 22 jogadores, um espírito de comunidade onde todos gritam pela mesma coisa e a mágica de ver com os próprios olhos os protagonistas de um espetáculo, executando sua arte.

Tudo aquilo soava como um batismo. Mesmo o primeiro sinal de hostilidade, o primeiro gatilho, foi superado em nome de um pensamento empático e sensível que quase não cabe nesse ambiente. A faixa "chupa bambi", mesmo sendo um incômodo enorme, foi superada por um sentimento que deveria permear toda a atmosfera de um fenômeno popular.

Infelizmente a faixa pejorativa em referência ao rival era apenas a primeira agressão de muitas que estavam por vir. Ao tentar agredir o adversário, um dos loucos do bando foi ferido com cânticos entoados pelo próprio povo.

A percepção demorou a vir. E só veio, já que a cada pedido do telão para que cessassem os gritos homofóbicos, o volume aumentava cada vez mais. Nem mesmo a paralisação do jogo, por conta das ofensas, foi suficiente para calar a violência.

Eis que 20 ou até 30 mil pessoas cantavam ao mesmo tempo que " dessas bichas teremos que ganhar".

E quando se deu conta, ele estava ali na maior demonstração coletiva de homofobia já vista em toda sua vida. Um coral formado por adultos, crianças, homens, mulheres... quase todo mundo ao redor cantava. Uma humilhação coletiva e explícita.

Pensamentos começam a surgir. Como seria se ele estivesse ali com o namorado? E o medo de não reagir da forma como as pessoas ao redor querem? Além do receio de parecer estar ali como cúmplice de uma manifestação violentamente homofóbica.

A lembrança de que naquele ambiente você não é bem-vindo e o receio de ser julgado pela própria comunidade por estar ali forjando um lugar que nunca lhe pertenceu, numa tentativa de desvinculação, talvez. Como uma traição ao movimento.
Pensamentos que consomem e assustam.

Na tarde do reencontro, mais uma vez a impressão de que o futebol rejeitava sua presença.
Quer ser um torcedor, mesmo sendo LGBTQIA+? Aceite a violência em silêncio. Ou desista.

Não se trata de polêmica e nem de algo lamentável. Estamos falando de um crime cometido por milhares de pessoas ao mesmo tempo, dentro de um estádio de futebol, não importa qual, e nem as cores que o sujeito veste. A homofobia se faz presente o tempo todo nesse ambiente.

Qual seria então a punição cabível para um crime coletivo, sabendo ser impossível punir 20 mil pessoas ao mesmo tempo? Perda de mando? Perda de pontos? Multa de milhões?

Tudo parece tão insuficiente diante da dor particular de não se sentir bem-vindo num dos ambientes que mais envolve o sentimento comunitário do “somos todos um”.

O árbitro apita o fim do jogo. O resultado talvez não importe tanto quando a vontade de ocupar um espaço negado continua viva num peito tomado pela dúvida de quanto tempo isso ainda vai levar. E, pior ainda: não há torcida no Brasil – talvez no mundo – que outros amantes de futebol igual esse meu amigo não tenha que viver a mesma triste experiência.

 

*foto: Bruno Teixeira/Site Oficial do Corinthians

 

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