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Cotidiano

Memórias de um bar torto em Santos

Após três décadas de atividades, tradicional casa noturna localizada no Canal 4 deve fechar as portas em setembro deste ano

Agência Brasil

Publicado em 14/07/2017 às 10:00

Atualizado em 19/04/2021 às 13:41

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Oficialmente, local fecha as portas dia 20 de setembro, no entanto, propostas de manutenção serão analisadas / Rodrigo Montaldi/DL

A ditadura militar ainda era o regime vigente no Brasil e as ruas de Santos não tinham a diversidade cultural de hoje naquele agosto de 1984, quando dois músicos sonhadores trocaram a ideia de sair do Brasil para ganhar a vida na Europa pelo sonho de montar um ‘palco com um bar em volta’ em um dos prédios tortos da orla da praia.  Questionando os padrões, nascia no dia 23 daquele mês o Torto, casa noturna que atravessaria gerações e resistiria da mesma forma e no mesmo endereço por mais de três décadas, acompanhando as mudanças na sociedade e na cidade.

Na última semana, o dono do estabelecimento, Michel Pereira, comunicou por meio das redes sociais que a casa será fechada de forma definitiva em setembro. O motivo seria o desinteresse por parte do proprietário de permanecer com o aluguel ativo. A reportagem tentou contato, sem sucesso, com o dono do imóvel.

“Abrir o Torto foi uma grande ousadia. Em uma Santos de casas noturnas que contavam apenas com duplas musicais, nós criamos um espaço onde bandas de qualidade técnica pudessem tocar, com todos os aparatos necessários. Foi uma fórmula que deu certo e foi muito bem feita por todos esses anos”, conta Julinho Bittencourt, um dos fundadores do bar.

É Julinho quem nos leva por um passeio pelas lembranças do bar pequeno e que, em sua própria fala, nunca foi projetado para ser uma casa noturna. Ele relembra que quando chegou com Roberto Biela (parceiro de banda e de sonhos) ao espaço que, de acordo com Alfredo Rosato (um dos primeiros sócios) era ideal para instalar o bar, encontrou apenas uma antiga imobiliária desativada, repleta de baias. “Seguimos na ideia louca do Alfredo e começamos a fazer a obra de alvenaria. Na noite da inauguração 680 pessoas circularam pelo Torto, o Canal 4 parou. Foi  algo inacreditável”, afirma o músico, que embora esteja distante da organização desde 2002, toca até os dias atuais nas noites musicais da casa.

Decoração e vivências

O imóvel pequeno de dois ambientes, instalado no começo da Avenida Siqueira Campos, guarda algumas preciosidades na parede, como a placa luminosa da antiga pista Chorão Skate Park e um pôster do Charlie Brown Jr. autografado pelos componentes originais da banda. Folders e placas de eventos artísticos tradicionais da cidade também possuem destaque, como um banner do Santos Jazz Festival e outro da Tarrafa Literária. Em tempo: ao longo dos 33 anos de história, a casa se consagrou como um lugar aberto à cultura e às novas mentalidades.

“Em uma época em que as baladas gays ficavam reduzidas aos guetos, o Torto já era friendly no coração da praia. Durante o regime militar e o período de redemocratização do Brasil, nossa decoração era feita com jornais da época e traziam manchetes importantes como a morte de Tancredo Neves e o impeachment do Collor”, relembra Julinho, acrescentando que em um tempo mais recente, durante a reforma psiquiátrica gerada pelo fechamento do Anchieta, o Torto serviu como ponto de encontro dos psiquiatras que estavam na cidade e hoje concentra diversos eventos culturais e artísticos de Santos.

Para ele, a grande sacada do bar foi apostar na música de qualidade e o seu fechamento iminente significa mais do que uma crise econômica, uma crise de bom gosto. “A cidade perde uma referência em música boa. Desde o início o Torto sempre prezou por ter uma programação que enfrentasse o mercado e isso se mantém até os dias atuais. Mas também entendo que a história do bar é a história da vida: a gente nasce, cresce, vive e morre. Faz parte do processo”, conta.

Desafios

Foi quase que por coincidência do destino que Michel Pereira virou sócio do Torto, no começo da década de 90. “Eu estava aqui, curtindo, ouvi uma das sócias dizer que caso alguém oferecesse uma quantia X ela venderia a parte dela. Dei um cheque, conversamos nos outros dias e fechamos a venda”, relembra o atual dono da casa.

No ramo há mais de 25 anos, ele conta que as casas noturnas geralmente têm prazo de validade, pois há um ‘efeito vespeiro’ na juventude, que costuma migrar com frequência para outros bares. “Nesse sentido”, conta, “o Torto é um fenômeno, por sempre ter se reinventado e possuir um poder de recuperação fantástico diante das crises”.

As tratativas para renovação do aluguel do espaço tiveram início ainda no final do ano passado, quando um aumento considerado por Michel ‘impraticável e fora dos padrões do mercado’ ameaçou a continuidade dos trabalhos.

“Buscamos o diálogo, tentamos a redução dos valores com a proposta de pagamento antecipado, mas nada adiantou. E para nossa surpresa recebemos no começo de maio deste ano a intimação de despejo por denúncia vazia, que é quando o proprietário, dentro do seu direito, requer a retomada do imóvel sem justificativa ao término do contrato”, afirma.

O desafio, agora, é buscar formas para solucionar o impasse. Oficialmente, o Torto fecha as portas dia 20 de setembro, no entanto, tratativas têm sido feitas e propostas estão sendo analisadas para a possível manutenção do espaço. “Temos que colocar tudo na mesa e analisar cada uma das dezenas de mensagens recebidas desde a publicação do encerramento das atividades”, conta Pereira.

A preocupação no momento é garantir o montante necessário para honrar com os pagamentos dos cerca de 50 funcionários diretos e indiretos do espaço. O único período no qual a casa fechou as portas foi em 2013, após a intimação da Prefeitura de que para funcionar era necessário o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB).

“Nesse tempo recebemos um apoio lindo de bares parceiros, da população santista e do Sesc. Foi um movimento incrível e que ao meu ver ressaltou que o Torto significa muito para Santos. Fomos palcos de muitas histórias e muitos artistas já passaram por  essa casa. Sem falsa modéstia, todos que passaram por aqui sabem dar a devida importância que essa casa merece. É isso que importa”, finaliza.

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