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Fordlândia: conheça império de borracha americano engolido pela Amazônia

O local foi criado pelo magnata da indústria automobilística Henry Ford, como parte de uma tentativa de escapar do monopólio britânico da borracha

Ana Clara Durazzo

Publicado em 21/07/2025 às 12:41

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A infraestrutura surpreendia: casas padronizadas, hospitais modernos, cinemas, praças, piscinas, energia elétrica e saneamento básico / Wikimedia Commons / Viagem em Pauta

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No coração da Amazônia, às margens do Rio Tapajós, um ambicioso projeto norte-americano ergueu do zero uma cidade com cinemas, hospitais, casas padronizadas, campos de golfe e até relógios de ponto.

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Batizada de Fordlândia, a localidade foi criada em 1927 pelo magnata da indústria automobilística Henry Ford, como parte de uma tentativa de escapar do monopólio britânico da borracha, matéria-prima essencial para os pneus dos carros que produzia.

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Hoje, o que restou desse sonho industrial é uma vila marcada pela decadência e pelo tempo. Conhecida como “cidade fantasma”, Fordlândia é um distrito do município de Aveiro, no Pará, e guarda ruínas de um passado que misturou tecnologia, colonialismo e desencontros culturais.

Um império no meio da floresta

Na década de 1920, o Ford T era o carro mais vendido do mundo. A linha de montagem criada por Ford, o chamado “fordismo”, revolucionava a produção em massa. Mas havia um problema: a borracha, fundamental para pneus e peças, era controlada pelos britânicos no Sudeste Asiático.

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A solução veio com uma ideia ousada: produzir borracha no Brasil. Com base em um estudo do governo americano, Ford comprou terras no Pará e iniciou a construção de uma nova cidade, planejada nos moldes das pequenas localidades dos Estados Unidos.

A infraestrutura surpreendia: casas padronizadas, hospitais modernos, cinemas, praças, piscinas, energia elétrica e saneamento básico. A intenção era transformar a floresta em uma colônia modelo para sua indústria.

O golpe na origem e os erros do projeto

Mas o sonho começou com um tropeço. Ao invés de negociar diretamente com o governo do Pará, Ford foi ludibriado por um cafeicultor local, Jorge Dumont Villares, que recebeu terras gratuitamente do estado e as revendeu por 125 mil dólares ao empresário americano. Pior: o terreno era montanhoso e inadequado para o cultivo de seringueiras.

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Mesmo assim, Ford seguiu em frente. Trouxe materiais, máquinas e até mudas de seringueira dos EUA. A floresta foi desmatada, as casas construídas e os seringais plantados. Mas a plantação homogênea, feita em fileiras compactas, favoreceu a propagação de pragas como o mal-das-folhas, que dizimou árvores e comprometeu a produção.

Choque cultural e motins tropicais

Além ds problemas técnicos, os choques culturais entre os administradores americanos e os trabalhadores brasileiros foram constantes. Os operários eram obrigados a seguir uma rígida rotina: alimentação nos refeitórios, proibição de álcool, toques de sirene e controle do tempo por relógio de ponto. Para os caboclos amazônicos, acostumados a um ritmo ditado pelo sol e pelo rio, a adaptação foi difícil.

Em 1930, um motim conhecido como "quebra-panelas" estourou no refeitório da Companhia Ford Industrial do Brasil. O estopim: a insistência dos americanos em servir espinafre diariamente, em detrimento da tradicional farinha, peixe e feijão. A revolta quase paralisou a cidade.

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Para escapar das regras, os trabalhadores cruzavam o Tapajós até a chamada "ilha dos inocentes", onde bebida e prostituição eram liberadas, uma válvula de escape para as tensões sociais que cresciam em Fordlândia.

Belterra: a última tentativa

Com a produção de borracha aquém do planejado, a Ford decidiu, em 1934, transferir parte das operações para uma nova localidade: Belterra, a 48 km de Santarém. Com solo melhor drenado e menos úmido, o local parecia mais promissor.

Lá, erros foram corrigidos: as mudas vinham do Ceilão (atual Sri Lanka) e os métodos agrícolas foram ajustados. Mas os mesmos problemas persistiram: baixa produtividade, falta de mão de obra e resistência dos trabalhadores às regras americanas.

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O fim de um império e o abandono

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a popularização da borracha sintética, a estratégia de verticalizar a produção de pneus perdeu o sentido. A Ford já não precisava controlar todas as etapas da fabricação de carros. Em 1945, o projeto foi encerrado.

O governo brasileiro comprou Fordlândia por 250 mil dólares, uma fração do que havia sido investido, e herdou escolas, hospitais, mais de duas mil casas, portos fluviais, centros de pesquisa e milhões de seringueiras plantadas.

Fordlândia hoje: ruínas, memórias e futuro incerto

Após o abandono, muitos trabalhadores permaneceram na cidade, atraídos pela infraestrutura. Com o tempo, Fordlândia passou a sobreviver da agropecuária, pesca e extrativismo, e viu um novo impulso com a abertura da rodovia Cuiabá-Santarém, na década de 1970. Atualmente, o distrito pleiteia emancipação política.

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Ainda hoje, Fordlândia mantém moradores fixos, cerca de 1.200, segundo o IBGE de 2010, e luta para preservar sua memória. Em 2017, foi elevada oficialmente à categoria de distrito. Um pedido de tombamento pelo IPHAN, aberto em 1990, segue em análise, travado por entraves fundiários e pelo difícil acesso à região.

Entre ruínas e lembranças, Fordlândia permanece como um dos capítulos mais curiosos da história da Amazônia e do capitalismo global, um símbolo de como mesmo as maiores potências podem se perder ao tentar impor seus moldes a outras realidades.

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