Cultura
Em 1988, o país vivia a redemocratização, enfrentava inflação alta e ainda sonhava com o tetracampeonato, enquanto a novela parava o Brasil
Na primeira versão, exibida há 36 anos, Odete Roitman interpretada por Beatriz Segall foi assassinada dez capítulos antes do final / Reprodução/Globo
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A geração mais nova nem imagina como era o Brasil quando "Vale Tudo" foi exibida pela primeira vez, em 16 de maio de 1988. Mas nós reunimos as principais informações para entender o passado e como o Brasil vivia uma fase de profundas mudanças políticas, sociais e culturais.
Basicamente, o país ainda não era tetracampeão do mundo, Lula não havia chegado à Presidência e a Constituição Federal recém-aprovada inaugurava um novo ciclo de redemocratização. E teve vários outros pontos culturais e políticos.
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Naquele tempo, a televisão colorida já havia se popularizado, mas o controle remoto ainda era um artigo de luxo e as chamadas tela em preto e branco ainda dominava nas camadas mais pobres. Para trocar de canal, o telespectador precisava levantar do sofá, e era comum que as famílias se reunissem na sala para assistir juntas às novelas.
A TV era o grande centro da vida doméstica, e assistir à novela das 8 era um ritual nacional. Escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, "Vale Tudo" retratava um Brasil dividido entre a honestidade de Raquel (Regina Duarte) e a ambição sem limites de Maria de Fátima (Gloria Pires).
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Em 1988, o Plano Cruzado havia ficado para trás, mas o país enfrentava uma inflação galopante que corroía o salário dos trabalhadores. Os preços mudavam todos os dias e os consumidores corriam para o mercado assim que recebiam o pagamento. A moeda vigente era o cruzado novo, apenas mais uma das várias tentativas de estabilizar a economia após trocas sucessivas desde os anos 1960.
Mesmo com as dificuldades, o Brasil respirava esperança de dias melhores, enquanto o governo de José Sarney tentava estabilizar a economia e consolidar as bases da nova democracia. Nessa fase, Fernando Collor de Mello ainda era apenas um prefeito e não havia conquistado o apelido de "caçador de marajás".
A situação só foi ficar sob controle com o plano real, lançado em 1994, que foi um marco na história econômica do Brasil, trazendo estabilidade após anos de hiperinflação. Com a criação da nova moeda, o real, o país conseguiu controlar a alta dos preços, recuperar o poder de compra da população e atrair investimentos.
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Enquanto "Vale Tudo" discutia ética, ambição e desigualdade, o rock brasileiro vivia seu auge. Cazuza lançava "Ideologia", a Legião Urbana embalava multidões com "Que País É Este", e os grupos Kid Abelha e Barão Vermelho dominavam as rádios. A efervescência cultural era tamanha que os palcos e programas de TV refletiam o espírito de liberdade recém-recuperado.
Xuxa também vivia o auge de sua carreira na TV Globo. O "Xou da Xuxa" era um fenômeno absoluto entre as crianças e consolidava a apresentadora como a “Rainha dos Baixinhos”. O programa reunia milhões de telespectadores e transformava músicas como "Ilariê" em hits nacionais. A loira lançava discos, revistas, brinquedos e até figurinos que viravam febre entre o público infantil, um verdadeiro império do entretenimento em plena formação.
E por falar na Rede Globo... A emissora era onipresente nas casas brasileiras, e o videocassete era o “streaming” da época, para quem podia pagar. A internet ainda era ficção científica, e a versão digital do país estava a anos-luz de nascer. O telefone ainda era um privilégio e o número fixo era símbolo de status social.
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Do outro lado, o SBT vivia um dos seus momentos de maior sucesso, consolidando-se como a principal concorrente da Globo na televisão brasileira. A emissora apostava em uma programação diversificada para um público popular que combinava novelas mexicanas, programas de auditório com grandes atrações e humor barato, como “A Praça é Nossa” e “Bozo”.
Mas os resquícios da censura ainda estavam presentes. Embora o regime militar tivesse terminado oficialmente, artistas e jornalistas conviviam com limitações herdadas dos anos de repressão. Ainda assim, a criatividade florescia em novas produções musicais, teatrais e televisivas.
Já no futebol, a Seleção Brasileira ainda buscava o tetracampeonato, que só viria seis anos depois, em 1994. Naquela época, Bebeto e Careca surgiam como promessas, enquanto Telê Santana era lembrado com saudade e Pelé era o embaixador eterno do esporte.
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Fora dos campos, Ayrton Senna aparecia como uma das maiores celebridades nacionais. Ele se consolidava como um dos maiores ídolos do automobilismo mundial. Suas vitórias na Fórmula 1 ajudavam a elevar a moral de um país cansado da crise econômica.
Na saúde, a história se complicava, e o Brasil enfrentava os primeiros anos da epidemia de Aids, uma doença cercada por medo, desinformação e preconceito. O Ministério da Saúde havia criado, em 1986, o Programa Nacional de DST/Aids, mas o acesso a medicamentos era extremamente limitado e os tratamentos, pouco eficazes.
A infecção ainda era vista como uma sentença de morte, e campanhas públicas começavam a tentar combater o estigma associado à doença. A mobilização de artistas e médicos ajudava a levar o tema ao debate, mas o preconceito contra pessoas soropositivas ainda era intenso em todo o país. A doença vitimou Cazuza e Renato Russo na década de 1990.
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Naquele ano, o Jornal Nacional tinha apenas 30 minutos, e "Vale Tudo" começava às 20h30. As famílias jantavam mais cedo para não perder nenhum capítulo de Odete Roitman (Beatriz Segall). O mistério sobre o assassinato da vilã mobilizou o país e transformou o último capítulo em um dos maiores fenômenos de audiência da história da TV brasileira.
Com seu enredo provocativo ,“vale a pena ser honesto no Brasil?”, a novela marcou uma geração televisiva e se tornou espelho de um país que ainda aprendia a lidar com liberdade, desigualdade e esperança.
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