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Sindical e Previdência

Navio Raul Soares - Memórias do cárcere flutuante

Livro escrito nos calabouços do Navio foi lançado ao mar

Publicado em 29/10/2013 às 11:35

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"Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras", foi a justificativa do Coronel ao seu autor

Impresso em 1965, o livro “Navio Presídio: A Outra Face da Revolução”, obra do jornalista Nelson Gatto, um dos presos do Raul Soares, que foi escrito no cárcere flutuante, foi apreendido pelo Dops sem chegar às livrarias.

A Justiça Civil mandou devolver o livro que, em seguida, foi apreendido pela Aeronáutica. No Superior Tribunal Militar, mais uma vez - e desta por 10 a 0-veio ordem para que fosse liberado, pois o relator, general Mourão Filho, nada viu de pernicioso em seu texto. Mas o então coronel da Aeronáutica, Francisco Renato de Melo, não obedeceu à ordem: invadiu a gráfica, apreendeu toda a edição e lançou-a ao mar.

Poucos exemplares escaparam e um deles está com este jornalista e autor, que o guarda como uma raridade. A obra retrata o clima entre os presos no interior daquela lúgubre embarcação.

Depois o coronel justificaria a Nelson Gatto: "Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras".

Impresso em 1965, o livro “Navio Presídio: A Outra Face da Revolução”, obra do jornalista Nelson Gatto, um dos presos do Raul Soares, que foi escrito no cárcere flutuante, foi apreendido pelo Dops sem chegar às livrarias (Foto: Divulgação)

"O depoimento que ora torno público, escrito em papel de embrulho num cárcere imundo de um dos sombrios navios-prisão em que brasileiros foram trancados, tratados como criminosos, é a explicação que dou aos meus amigos. Sem qualquer pretensão literária, é apenas um documento a retratar o Brasil numa época desgraçada."

Assim começa o livro Navio Presídio que poucos leram, ao contrário do que seu autor, o jornalista Nélson Gatto, pretendia. Escrito em 65, foi apreendido pelo Dops ( Delegacia de Ordem Política e Social) sem chegar às livrarias. A Justiça Civil mandou devolver o livro que, em seguida, foi apreendido pela Aeronáutica. No Superior Tribunal Militar, mais uma vez - e desta por 10 a 0 - veio ordem para que fosse liberado, pois o relator, general Mourão Filho, nada viu de pernicioso em seu texto. Mas o então coronel da Aeronáutica, Francisco Renato de Melo, não obedeceu à ordem: invadiu a gráfica, apreendeu toda a edição e lançou-a ao mar. Poucos exemplares foram salvos.

Depois o coronel justificaria ao autor: "Os juízes têm canetas, nós temos metralhadoras". Gatto, que havia passado 43 dias no navio-presídio, voltou a ser preso em 67, para responder sobre o livro, conforme prometera o então capitão dos portos, Júlio de Sá Bierrembach.

O texto, do jornalista Carlos Mauri Alexandrino, menciona que os velhos ferros rangiam com as oscilações noturnas das marés, estalavam com os leves balanços que o banco de areia onde fora encalhado o navio ainda permitia. Som monótono quebrado pelas tosses doentias dos que já escarravam sangue, que tossiam para fora os pulmões corroídos pela umidade e pelo frio. Era o único ruído que se permitia atravessar as portas trancadas e vencer os sombrios corredores.

Os que mesmo sem cobertas conseguiam dormir sobre imundos colchões úmidos, vencidos pelo cansaço, eram despertados muitas vezes pelo exército de pulgas, baratas e percevejos que insistiam em entrar nos narizes, bocas e orelhas adormecidas. Na maioria das celas, entretanto, enfrentar o colchão era menos desconfortável que ficar em pé, com água gelada pelo tornozelo.

De repente, uma patrulha abria a porta e lançava para dentro a luz de uma lanterna elétrica, sempre secundada pelos canos ameaçadores das metralhadoras portáteis. Os homens da Polícia Marítima entravam levantando os prisioneiros e revistando tudo, como se fosse possível esconder alguma coisa. Os escritos eram apreendidos para ser anexados aos processos ou então para abertura de novos inquéritos: uma poesia podia significar mais algumas semanas no imundo navio-prisão.

Às seis horas soava a sirena, a ordem para que todos se levantassem. Em pouco tempo era servido o café e um pedaço de pão. Eram colocados fora das celas que eram abertas o tempo suficiente para que o preso apanhasse a caneca, sob a mira das metralhadoras, para que não conversasse ou lançasse qualquer olhar sobre o vizinho de infortúnio. Às onze horas, era servido o almoço, no convés, para onde os presos eram encaminhados em fila indiana, sob mira das armas também.
Cada um pegava sua bandeja que era enchida com uma pasta de arroz e feijão-preto, na maioria das vezes, azeda e malcheirosa, que provocava diarréias incontroláveis e dores de estômago. Não havia talheres para todos e por isso eram obrigados a comer com as mãos.

Alguns se recusavam a esse tratamento, exigindo o tratamento digno de um preso político: esses simplesmente não comiam mais, contentando-se com a banana ou a laranja servida como sobremesa. O jantar era uma sopa intragável feita com os restos do almoço, servida lá pelas 16,30 horas.

As saídas das celas eram limitadas a uma ida diária ao banheiro e aos chamados arejamentos que não eram diários e, preferencialmente, nos dias chuvosos e frios, quando os presos eram colocados no convés para caminhar ou fazer exercícios forçados incompatíveis com suas condições físicas. Muitos presos, em cinquenta dias de prisão, não chegaram a sair para arejamento dez vezes, meia hora em cada uma. Nada de conversa: era proibido.

A ida ao banheiro eram sempre acompanhadas por soldados armados com metralhadoras que exerciam forte vigilância nos presos, que tinham que fazer suas necessidades fisiológicas com a porta aberta e sempre com a metralhadora empunhada pelo soldado, voltada ameaçadoramente para seus corpos, numa situação humilhante e degradante.

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