SANTOS

Quilombos e personagens históricos negros dão protagonismo a Santos na luta pela liberdade

homens e mulheres negras tiveram papel importante neste movimento que deu fim aos mais de 300 anos de escravidão do povo de origem africana

Da Reportagem

Publicado em 20/11/2022 às 07:00

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Quintino de Lacerda, Maria Patrícia Fogaça e Pai Felipe são algumas dessas figuras históricas / Divulgação/ PMS

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No dia 20 de novembro é celebrado o Dia Nacional da Consciência Negra. A data remete à morte de Zumbi dos Palmares, figura histórica que representa toda a resistência e luta pela liberdade no País. E Santos tem grande representatividade nesta luta. Na Cidade, homens e mulheres negras tiveram papel importante neste movimento que deu fim aos mais de 300 anos de escravidão do povo de origem africana.

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Quintino de Lacerca, Pai Felipe, Maria Patrícia Fogaça são algumas dessas figuras históricas nesta luta e que, juntamente com outros milhares de negros e negras, também ajudaram a desenvolver a cidade de Santos, como destaca o pesquisador e jornalista Marcos Augusto Ferreira, responsável pela pesquisa do site Memórias e Narrativas de Tecnologias Negras da Baixada Santista.

O pesquisador lembra que Santos é uma cidade onde a colonização começou logo na chegada dos portugueses ao Brasil e, consequentemente, o emprego de mão de obra negra escravizada se dá desde o século 16. “Eles contribuíram, de maneira forçada, em todas as etapas de desenvolvimento de Santos, seja com sua força bruta ou com seus conhecimentos, pois muitos escravizados eram especialistas em agricultura, engenho e ciências em geral. Esse poderio intelectual também foi vítima de apagamento ao longo dos anos”.

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Ferreira explica que, durante anos, a história contou o processo de libertação dos escravos sempre do ponto de vista do homem branco, atribuindo à elite abolicionista santista a responsabilidade pela libertação dos negros, como resultado de uma "população prioritariamente esclarecida e progressista, como se esse processo de liberdade fosse uma forma benevolente de compensação".

Mas, a realidade, de acordo com o pesquisador, é muito diferente. A construção se deu pela luta e resistência de negros e negras que por aqui viviam e fizeram desta causa a história da própria vida.

“Santos teve papel fundamental na luta contra a escravidão. O século 19 foi repleto de rebeliões e revoltas abolicionistas em todo o Brasil e aqui não era diferente, sempre existiu resistência. Com o crescimento da importância do Porto, a partir da década de 1870, cresceu o número de associações abolicionistas, de apoiadores religiosos e, claro, de quilombos, que foram fundamentais, pois além de abrigar e proteger alforriados e fugitivos, também serviam de apoio para que eles pudessem se empregar em trabalhos na Cidade”, explica Ferreira.

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QUILOMBO DO JABAQUARA

Considerados por alguns historiadores como o segundo maior quilombo do Brasil em número de habitantes (pesquisadores divergem entre 3 e 10 mil, atrás apenas do dos Palmares), o Quilombo do Jabaquara nasceu na década da abolição, em 1882. Além de um abrigo e de um refúgio, o local era visto como uma ponte para inclusão da mão de obra assalariada no porto.

No século 19, Santos era assolada por inúmeras doenças. Documentos da época relatam surtos de febre amarela, varíola (bexigas), impaludismo, tuberculose, sezões (malária) e febre bubônica, cujo número de casos aumenta no final da década de 1880. Essas doenças afastaram as elites e muitas outras pessoas da Cidade que, com a chegada da linha férrea, passaram a viver em São Paulo.

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Sendo assim, um conjunto de fatores acaba tornando a Cidade uma boa opção de refúgio para os negros, sejam eles fugidos ou alforriados. “Existia a necessidade de mão de obra em Santos, tinham  abrigos e segurança (os Quilombos), apoio logístico nas fugas dos escravizados (incluindo a parada feita no Jabaquara em São Paulo) e uma boa localização geográfica, que ficava longe das antigas fazendas”, explica Ferreira.

CAIFAZES

Santos se tornou o destino prioritário para os escravizados que fugiam das antigas fazendas paulistas. Estes contavam com o auxílio dos caifazes, um grupo de abolicionistas responsável por planejar e ajudar nas fugas. Após escaparem, eles seguiam com destino ao bairro Jabaquara, em São Paulo, um ponto de parada antes de descerem a Serra para o Quilombo do Jabaquara (de Santos).

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Durante todo o trajeto, eles eram acolhidos e escoltados por quilombolas, muitos deles capoeiristas valentes que, se preciso, entregavam a própria vida em batalha pela libertação de seus irmãos.

QUINTINO DE LACERDA

Entre estes bravos capoeiristas estava o sergipano Quintino de Lacerda, uma das principais figuras históricas de Santos, que traz na complexidade de sua trajetória a luta pela liberdade e por melhores condições sociais aos negros.

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Essa história é retratada no livro do historiador Pedro Figueiredo Alves da Cunha (Capoeiras e valentões na história de São Paulo, ed. São Paulo – 2014). O autor conta que Quintino subia a serra, à noite, para encontrar os fugitivos, enfrentando muitas vezes, na estrada de São Paulo, capitães do mato. De acordo com o historiador, não eram raras as vezes que os capitães fugiam após as batalhas.

Lacerda, era conhecido, além de sua valentia, pela capacidade para liderar e negociar. Tinha bom relacionamento tanto com negros e negras quanto com a elite branca santista. Foram justamente os membros desta elite que cederam as terras (região onde atualmente está o centro de treinamento do Santos, o Morro do Fontana e a subida do Morro do Jabaquara) para a instalação do quilombo.

O sergipano foi o líder dos quilombolas santistas do Jabaquara. Hoje sua figura é considerada controversa, justamente pela proximidade dele com a elite santista. Mas o pesquisador Marcos Augusto Ferreira faz questão de destacar que existe preconceito por trás dessas afirmações. “É interessante como sempre se buscam controvérsias em figuras históricas negras. Seria impossível, naquela época, fazer tudo o que ele fez na luta pela liberdade sem ter boa interlocução com os brancos. Ele precisava do apoio de quem determinava as leis e essas ajudas eram sempre negociadas”.

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Coube a Quintino de Lacerda também a ajuda para empregar os negros oriundos do quilombo no Porto, seja antes ou depois da abolição. “Cabe destacar que ele apoiou a luta republicana e também foi eleito vereador em Santos, sendo uma figura importantíssima para a Cidade”, complementa o historiador.

PAI FELIPE

Contemporâneo de Quintino de Lacerda e um grande aliado nas incursões pela Serra para auxiliar na libertação de homens negros escravizados, Pai Felipe era africano de nascimento. Trazia no sangue e na história pessoal a luta pela liberdade, já tendo liderado outros quilombos pelo estado, antes de se transferir para Santos e instalar-se na área hoje conhecida como Vila Mathias.

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Era conhecido como o Rei Batuqueiro por conta das batucadas que realizava no local, que se tornaram lendárias em Santos. O som dos atabaques atraía a atenção até dos senhores da classe rica, que flertavam com o abolicionismo.

O memorialista Carlos Victorino, em seu livro Reminiscências (digitalizado e disponível neste link, retrata Pai Felipe: “Num dos recantos da Vila Mathias existia o quilombo chefiado por Pai Felipe, um preto já velho, mas de um tino aguçado, comandando com muita prudência o seu povo. Nesse quilombo, embrenhado numa porção do mato e habilmente encoberto de vistas perseguidoras, fizera Felipe o acampamento de sua gente que trabalhava no corte de madeira para lenha e construção, e na indústria de chapéus de palha”.

O quilombo se estendia por boa parte da Vila Mathias e possuía uma ligação muito forte com o Quilombo do Jabaquara. Pai Felipe, por possuir marcações no rosto de realeza africana, era tido por muitos como um rei que foi capturado e trazido cativo ao Brasil. É tratado por parte dos historiadores como um líder carismático e um dos grandes responsáveis por traçar as rotas de fuga dos negros cativos das fazendas no interior para Santos.

QUILOMBO DO GARRAFÃO

O quilombo do Garrafão recebeu esse nome em homenagem ao português José Theodoro Santos Pereira, o Santos Garrafão (apelido adquirido por ser baixo e gordo), que era casado com a ex-escrava Brandina, dona de uma pensão na Rua Setentrional (ao lado do atual prédio da Alfândega).

Santos Pereira ajudou a manter o quilombo do Jabaquara e comunicava aos abolicionistas a descida de escravos fugidos pela Serra do Mar. O quilombo do Garrafão ficava onde hoje está a Praça Antônio Teles, no Centro Histórico.

Como é possível perceber, os quilombos de Santos se ajudavam e eram auxiliados por uma parcela da elite branca abolicionista santista. Estes também aproveitavam da mão de obra assalariada dos negros e da cultura deles, sendo partícipes de batucadas e aprendizes da capoeira, que em Santos ganhava fama, principalmente nas brigas.

MARIA PATRÍCIA FOGAÇA

Nem só de quilombos se fez a resistência e luta do povo negro de Santos pela liberdade. Maria Patrícia Fogaça foi uma das mais importantes parteiras da Cidade e uma figura que merece, de acordo com os especialistas, mais destaque na história santista.

Casou-se muito jovem com Levino Fogaça e foi responsável pelo nascimento de milhares de santistas no século 19. Era  venerada pelo seu talento, tendo entre seus fãs o célebre médico Silvério Fontes, um dos grandes defensores de Fogaça, quando ela sofreu diversos ataques de mulheres da elite santista, claro, pelo fato de ser negra.

No período em que Maria Patrícia viveu e atuou, a Cidade era constantemente assolada por vírus e diversas outras doenças, além de sofrer com as dificuldades sanitárias impostas pela época, o que tornava o trabalho das parteiras ainda mais difícil e importante.

Chegou a ser chamada de Mãe Preta e de mãe de todos os santistas. Segundo convergem os historiadores, fazia o trabalho por paixão, tratando de auxiliar mães ricas ou pobres. Em 1883, fundou a Sociedade Espírita Anjo da Guarda.

HISTÓRIA DOS HERÓIS NEGROS É FUNDAMENTAL

Uma das principais fontes de pesquisa e informação disponível sobre a história das grandes personalidades e locais ligados aos negros em Santos é o site Memórias Narrativas e Tecnologias Negras na Baixada Santista. De acordo com uma das articuladoras da pesquisa histórica, Luiza Ribeiro Xavier, coordenadora de comunidades do Instituto Procomum, esse resgate da história é fundamental para pensar no futuro do País.

“Durante anos foi sustentada a narrativa de que a população negra não tinha conhecimento. A representação histórica na construção da Cidade é muito importante para nós. Até a imaginação para criação e potencialização de talentos é maior quando você percebe que possui exemplos de pessoas negras no seu território que tiveram feitos notáveis", explica.

Luiza relata que ela própria, mulher e negra, já sentiu os efeitos de uma construção de história em que os negros quase sempre aparecem como coadjuvantes.

“Ainda hoje me recordo de situações da escola, em que eu acreditava que não poderia ser inteligente, que não seria capaz de ter destaque. Depois, ao me aprofundar e estudar mais, pude perceber o quanto a representatividade tinha papel nisso”.

Nesse dia 20 de novembro, Luiza faz uma ponderação importante sobre a história de luta e a importância da representatividade e igualdade. “A história é um processo contínuo marcado pelos fatos e pelas narrativas. Precisamos olhar para o passado através da nossa perspectiva, para olhar para um futuro melhor. Acredito que grande parte das soluções para os grandes problemas da atualidade está na tecnologia e no conhecimento negro”. 

 

 

 

 

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