Santos

Movimento por moradia quer mudar destino de ZEIS em Santos

Movimentos populares e lideranças locais se mobilizam contra projeto que altera uso de áreas destinadas à moradia popular em Santos

Carlos Ratton

Publicado em 06/08/2025 às 06:40

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Dois terrenos públicos localizados na Avenida Ana Costa foram colocados à venda durante o governo Bolsonaro / Nair Bueno/DL

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Dezenas de pessoas envolvidas no movimento por moradia em Santos deverão lotar, nesta quarta-feira (6), a partir das 19 horas, o auditório Vereadora Zeny de Sá Goulart, da Câmara de Santos (Praça Tenente Mauro Batista de Miranda, nº 1, Vila Nova), na audiência pública sobre a alteração de uso na Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) Vila Mathias. 

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Em uma carta aberta contundente, lideranças do movimento garantem que “Santos virou produto e a moradia virou mercadoria. E quem deveria zelar pelo bem comum (poder público) se tornou cúmplice da grilagem institucionalizada”, revela o documento.   

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No documento, os manifestantes lembram de dois terrenos públicos localizados na Avenida Ana Costa que foram colocados à venda durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a uma construtora, “com aval de um conjunto de leis criadas para eliminar qualquer proteção legal do povo trabalhador”. O Diário do Litoral chegou a publicar a questão (ver nesta reportagem).  

Vale lembrar que em 2022, o prefeito Rogério Santos (Republicanos) sancionou leis que permitiram a flexibilização das ZEIS. No ano seguinte, a Construtora Macuco protocolou o pedido para construir empreendimentos imobiliários de alto padrão na ZEIS da Vila Mathias. 

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“O processo seguiu sem transparência, com omissão de atas, manobras em conselhos e até descumprimento de requisições da Defensoria Pública. Enquanto isso, o povo segue morrendo onde vive. A cada incêndio em palafita, a cidade grita por justiça e dignidade. Mas os representantes do poder parecem não ouvir. Ou pior: ouvem, mas escolhem lucrar com isso”, afirmam os manifestantes. 

O documento aponta que o vereador Adilson Júnior (PP), hoje Presidente da Câmara, tem atuado diretamente na tentativa de revogar os instrumentos que ainda protegem as ZEIS e no avanço de projetos que desmontam o que restou das garantias legais à moradia digna. Só na cidade de Santos, aproximadamente 10 mil pessoas procuram uma moradia digna em meio à disputa por terrenos.

Para os integrantes do movimento, a revogação do artigo 76 do Plano Diretor e do artigo 152 da Lei de Uso e Ocupação de Solo (LUOS) são essenciais para o futuro da Santos. “Vender uma ZEIS é decretar que a vida do povo tem menos valor do que o lucro de poucos. A Santos que sonhamos não cabe dentro de um balcão de negócios. Enquanto as palafitas queimam e a vida escorre pelos vãos da negligência, o poder público cava fundo a cova da nossa dignidade. Em nome de um progresso que serve a poucos, Santos tem enterrado o direito à cidade com placa, loteamento e matrícula em nome da especulação imobiliária”, finaliza a carta aberta. 

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Controvérsias  

Conforme já publicado pelo Diário, os dois terrenos arrematados da Avenida Ana Costa, números 80 e 89, geraram controvérsias. Eles pertenciam à União e foram arrematados em leilão online promovido no final do Governo Bolsonaro. O lance vencedor foi de R$ 6,4 milhões.

Um novo Plano Diretor do Município foi sancionado em dezembro do ano anterior (2022) e o mecanismo que permitia a retirada de imóveis das áreas de ZEIS a partir do pagamento da contrapartida ao Município foi proposto pela Câmara. O dispositivo estaria amparado pelo Estatuto das Cidades.

Na ocasião, o então secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano de Santos, Glaucus Renzo Farinello, afirmou que a contrapartida paga pela Macuco – cerca de R$ 5,3 milhões - à Prefeitura com o objetivo de liberar a construção de empreendimentos por conta da compensação pela mudança na classificação das duas áreas, incluídas na ZEIS Vila Mathias, deveria ser suficiente para comprar um terreno capaz de abrigar até 300 moradias populares.  

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A alteração na classificação dos dois terrenos foi submetida à Prefeitura e motivou a proposição de um mandado de segurança por parte da Defensoria Pública do Estado (DPE). Em "tutela de urgência", a juíza Fernanda Menna Pinto Peres, da 1ª Vara da Fazenda Pública chegou a suspender a tramitação do Procedimento Administrativo nº 011617/2023-39 por suposta falta de transparência. A Administração afirmara na ocasião que fez diversas reuniões para tratar do tema, tanto que o Conselho Municipal de Habitação aprovou o pleito do grupo (Construtora Macuco) sem nenhum voto contrário. 

Prefeitura e Câmara

Procurada, a Prefeitura de Santos garante que, nos últimos anos, foram destinadas 2.145 moradias para pessoas que viviam em palafitas. Entre essas, parte do núcleo Malvinas, na Vila Alemoa, foi realocado em parte para o Conjunto Bananal, com 300 novas moradias.

Afirma que há mais 934 unidades em andamento (60 no Parque Palafitas, 574 no Santos AB/Prainha II e 300 no Santos Z/Jabaquara) e mais 1.024 unidades com obras prestes a começar (Santos V/Estradão) - todas para famílias moradoras em palafitas. 

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Além disso, foram selecionados os projetos do programa Novo PAC Periferia Viva, com destaque para o recurso já destinado ao São Manoel. “De 2013 a 2025, também foram realizadas 2.414 regularizações fundiárias, sendo 1.260 desde 2021. Estão em andamento 2.493 regularizações”, afirma nota.

Afirma ainda que a Cidade já vem trabalhando num amplo projeto que visa a urbanização, consolidação e transformação de todo o território da Vila Gilda e demais locais da Zona Noroeste que têm a presença de palafitas. “O prefeito Rogério Santos, em seu primeiro ato do segundo e atual mandato, criou um grupo de trabalho específico para tratar destas questões, demonstrando a relevância e prioridade das ações de Governo para o tema”.

O presidente da Cohab-Santista, Maurício Prado, se comprometeu com os movimentos de moradia, em reunião com participação de representantes da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e do vereador Chico Nogueira, no final de julho, que a área localizada na Rua Júlio Conceição, 133, na Vila Mathias, será destinada à construção de unidade habitacionais para famílias de movimentos de moradia cadastradas no Conselho Municipal de Habitação. 

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Também haverá 40 unidades destinadas aos movimentos de moradia de Santos, por meio de convênio firmado com o Governo do Estado. Há outros conjuntos em análise, aguardando liberação de recursos, por meio do Minha Casa Minha Vida, em análise pela Caixa Econômica Federal, para atender a essa público.

Adilson Júnior garante que tem pautado sua atuação pelo diálogo democrático e pelo respeito à legislação vigente, sempre em busca de soluções que atendam ao interesse coletivo. Esclarece que não é autor de nenhum projeto relacionado à alteração de uso das áreas ZEIS na Vila Mathias e que desconhece o teor completo da carta mencionada. 

Audiência Pública é para ratificar compra dos terrenos 

A audiência foi solicitada pela Comissão Permanente de Desenvolvimento Urbano e Habitação Social (CDUHS). O Projeto de Lei (PL 238/2025), enviado pelo Executivo à Câmara no final de junho, pretende permitir a alteração do uso de dois terrenos dessa ZEIS, totalizando 4.356,30 metros quadrados, mediante uma contrapartida financeira no valor de R$ 5.297.047,34. Os imóveis foram comprados da União pela Macuco Incorporadora e Construtora Ltda.

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De acordo com o parecer da Comissão Municipal das Zonas Especiais de Interesse Social (COMZEIS), os recursos seriam destinados à aquisição de novas áreas para provisão habitacional localizadas exclusivamente nas zonas de morros “devido ao pertencimento das famílias a serem atendidas”.

A realização da audiência atende à Lei Complementar 1187/2022, que disciplina o ordenamento do uso e da ocupação do solo na área insular de Santos. A Lei exige autorização legislativa para alterações de uso em ZEIS, precedida por audiências públicas e parecer técnico da COMZEIS.

Deve ser comprovado o interesse público e maior vantagem no cumprimento da política habitacional. A mudança também precisa ser aprovada pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano (CMDU) e pelo Conselho Municipal de Habitação (CMH). 

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Escritor e vereador engrossam a luta por moradia    

O escritor e poeta Alexandre Miguel de Souza também defende as ZEIS e cita o último incêndio ocorrido em Santos. “Mais uma vez escancarando a ausência de políticas públicas voltadas à moradia digna e à proteção da população mais vulnerável. A tragédia não é apenas fruto do acaso ou de más condições estruturais. É consequência direta de um déficit habitacional crônico que a cidade enfrenta, alimentado por décadas de descaso e decisões políticas que favorecem os interesses do mercado imobiliário em detrimento da vida do povo”. 

Para o escritor, as ZEIS têm sido usadas de maneira arbitrária para atender aos interesses da especulação imobiliária. Ele acredita que lógica do lucro se sobrepõe ao direito básico à moradia, aprofundando as desigualdades. “Esse cenário tem raízes profundas: é herança de um Brasil escravocrata, que após a abolição negou aos negros o acesso à terra, consolidando a exclusão com a Lei de Terras de 1850 — que destinou os grandes lotes aos ricos e impediu o povo liberto de construir uma vida digna”.

Finalizando, o poeta garante que povo não precisa de esmola. Precisa de políticas públicas eficazes, de investimentos reais em habitação, saneamento, regularização fundiária e infraestrutura. “Enquanto o direito à cidade continuar sendo privilégio de poucos, tragédias como essa (incêndio) continuarão a acontecer e seguirão sendo tratadas com a mesma negligência de sempre. É hora de romper com esse ciclo”. 

Em pronunciamento recente na Câmara, o vereador e médico infectologista Marcos Caseiro (PT) não poupou críticas à aprovação, pelo CMDU de Santos, da continuidade de um processo referente às áreas na Avenida Ana Costa.      

“A decisão ignora a participação social, fragiliza as áreas de ZEIs, empurra moradores de baixa renda para regiões onde a oferta de serviços públicos é menor e privilegia uma grande empresa do ramo imobiliário. Mas tudo isso só foi possível porque temos um Poder Legislativo que não legisla a favor do povo, mas de interesses privilegiados”, disparou o parlamentar. “O prédio de luxo será erguido pela Construtora Macuco, que comprou a área social por uma bagatela”, completou o médico.  

Ele lembrou que em troca a empresa destinará pouco mais de cinco milhões para a Prefeitura construir moradias populares bem longe das áreas nobres.  “Provavelmente as unidades em locais onde falta lazer, cultura e eficiência nos serviços. Lá onde os alagamentos são mais constantes e de onde as trabalhadoras e os trabalhadores gastam mais tempo para chegar no emprego”, ressaltou o vereador. 

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