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Lava Jato acelerou processos, mas 'direito penal de Curitiba' é criticado

Para o ministro Gilmar Mendes, esse novo direito não respeita 'parâmetros legais', a Constituição sofre violações em série e delações são até encomendadas

Folhapress

Publicado em 19/11/2017 às 14:01

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Gilmar Mendes alfinetou a Operação Lava Jato, considerando-a arbitrária e abusiva / Geraldo Magela/Agência Senado

Quando o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes quis alfinetar a Operação Lava Jato, considerada arbitrária e abusiva por ele, disse que procuradores e o juiz Sergio Moro criaram "o direito penal de Curitiba". Para ele, esse novo direito não respeita "parâmetros legais", a Constituição sofre violações em série e delações são até encomendadas.

Aliado e conselheiro de alvos da Lava Jato como o presidente Michel Temer e o senador Aécio Neves (PSDB-MG), a visão de Gilmar não é endossada por pesquisadores do direito, mas sua crítica roça numa novidade, ainda de acordo com especialistas: a Lava Jato inventou não um novo direito penal, algo que demanda tempo para cristalizar, mas uma nova maneira de conduzir processos penais.

Não é só na velocidade acelerada dos processos que a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e o juiz Moro inovaram, reduzindo o tempo de um ação de 4 anos e 4 meses, a média nacional apurada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 2016, para 9 meses e 12 dias.

Há novidades também no uso de recursos que são mais comuns no direito anglo-saxão, o chamado "common law", do que na tradição romana a que o Brasil se filia, como os acordos de delação e de leniência e os pedidos de ajuda a outros países para obter provas.

Há também medidas extremamente polêmicas, como prisões preventivas longas e as conduções coercitivas, tidas como inconstitucionais por pesquisadores.

"A Lava Jato constitui mais um capítulo da louvável tentativa de reconfigurar a relação entre crime e política no Brasil. A principal inovação está no processo, não no direito penal", diz Alaor Leite, professor de direito penal na Universidade Humboldt, de Berlim.

Segundo ele, o caso da Lava Jato é completamente diferente do mensalão, no qual houve um debate técnico sobre corrupção e atos de ofício, lavagem de dinheiro e até sobre a responsabilidade dos que comandam, mas não se envolvem diretamente no crime, a chamada teoria do domínio do fato.

A Lava Jato, para efeitos teóricos, só levantou a discussão sobre a diferença entre o caixa dois eleitoral e a corrupção (neste caso haveria enriquecimento para o político), ainda de acordo com Leite.

O ofuscamento do debate ocorreu por causa dos acordos de delação, segundo Leite. Previstos na lei brasileira desde 1990, eles só ganharam segurança jurídica a partir de 2013, com a lei contra o crime organizado, quando passaram a ser regidos por um contrato entre o delator e o Ministério Público.

A discussão arrefeceu com as delações porque não há mais lacunas probatórias, na visão de Leite. "Há 'anexos' fartos, áudios reveladores, imagens constrangedoras. A inovação é a seguinte: a nitidez das provas obtidas por meio das muitas colaborações premiadas praticamente apaga a relevância dos debates técnicos. Nunca o ditado 'uma imagem vale mais do que mil palavras' pareceu tão certeiro. Ocorre que no direito são as palavras, não as imagens, que condenam cidadãos".

Pontos críticos

Os pontos mais críticos da Lava Jato são as prisões preventivas, as conduções coercitivas e a falta de regras claras para os acordos de delação, segundo estudiosos. Nenhum dos especialistas ouvidos pela reportagem condena as prisões, mas todos apontam casos que consideram ilegais.

"Muitas prisões preventivas da Lava Jato não foram fundamentadas com base nos critérios da lei e isso é ruim. Não considero que o desejo de combater a impunidade deva ser atendido antecipando prisões", diz Thiago Bottino, advogado e coordenador do curso de direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas) no Rio.

Um caso famoso é o dos empresários Eduardo Meira e Flávio Macedo, que criaram uma empresa de fachada que pagou propina ao ex-ministro José Dirceu.

Eles foram presos em maio do ano passado com o argumento de que havia risco de continuarem a cometer crimes.

Em março deste ano, foram condenados a 8 e 9 anos pelo juiz Moro. Em vez de serem soltos para recorrer em liberdade, como determina a lei, Moro manteve a dupla presa até outubro, quando o Supremo decidiu soltá-los.

Se houve abusos no uso das prisões preventivas, também houve atropelo em acordos que previam cumprimento, não de medidas cautelares, mas de penas, mesmo quando o investigado não havia sido condenado, diz o pesquisador Vinícius Gomes de Vasconcellos, doutor em direito pela USP e autor de dois livros sobre barganhas judiciais.

Foi isso que ocorreu em acordos de delação assinado entre os executivos da Odebrecht e a Procuradoria-Geral da República.

"Cumprir a pena antes do sentenciamento é problemático porque acaba com o processo", afirma, frisando que esse mecanismo inverte a lógica da lei. Para ele, podem ocorrer casos em o investigado será absolvido ao fim do processo por falta de provas.

Os procuradores da Lava Jato também "criaram" penas, segundo os especialistas.

Foram aplicadas em profusão penalidades que não estão previstas na lei, como a prisão domiciliar semiaberta diferenciada (em que o condenado pode sair durante o dia e no início da noite volta para casa) e a prisão domiciliar aberta (quando tem a obrigação de voltar para a casa apenas nos finais de semana e feriado).

Bottino diz que isso ocorre porque não há no país diretrizes que orientem como esses acordos devem ser feitos. "É preciso haver um regramento de delação premiada a fim de manter um padrão para acordos feitos pelo Ministério Público Federal".

Atualmente não há padrão nem mesmo entre os acordos feitos na Lava Jato em Curitiba, no Rio e em Brasília.

O exemplo mais explosivo da falta de padrão nos acordos foi a decisão do ministro do Supremo Ricardo Lewandowski de devolver a delação do marqueteiro Renato Pereira, que atuou em campanhas do PMDB no Rio e São Paulo.

Para o ministro, a PGR (Procuradoria-Geral da República) excedeu-se no acordo ao conceder benefícios e determinar penas, o que seria uma prerrogativa de magistrados. O ministro já havia defendido essa posição em casos anteriores, junto com Gilmar, e saiu derrotado.

Há outro problema prático: o ministro Teori Zavascki (1948-2017) e seu sucessor no cargo, Edson Fachin, já homologaram mais de uma centena de delações em que as penas e benefícios foram negociadas pelo Ministério Público, não por juízes ou ministros do Supremo.

A Lava Jato pode ter revolucionado a relação entre poderosos e impunidade a partir das delações, como diz Gilmar. Mas é muito cedo, segundo Bottino, para comemorar o fim da impunidade.

O resultado da operação, diz ele, só poderá ser aferido depois que todos os processos passarem por todas as instâncias, algo que ninguém consegue prever quando ocorrerá, tamanha é a lerdeza da Justiça brasileira.

'Qualidade das provas mudou', diz procurador em Curitiba

A Lava Jato conseguiu romper com o círculo vicioso de processos contra criminosos de colarinho branco, que acabavam impunes, porque mudou a qualidade das provas, segundo o procurador Roberson Pozzobon, integrante da força-tarefa da operação em Curitiba. "Há um novo paradigma probatório na Lava Jato. Focamos bastante na produção de provas e deixamos os réus perplexos com a qualidade do material."

Antes da Lava Jato, avalia Pozzobon, as ações discutiam questões processuais, como a legalidade da duração de grampos telefônicos ou a validade de um documento vindo da Suíça, e não o crime propriamente dito. Como as obras investigadas da Petrobras eram complexas e seu eventual superfaturamento poderia levar anos para ser provado, a força-tarefa preferiu focar em três crimes: corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

Houve também busca de provas em outros países por meio de cooperação internacional, uma via rápida se comparada ao método anterior, de cartas rogatórias, que demoravam anos para ter resposta por causa de questões burocráticas. Foi essa mudança que propiciou a condenação de executivos das empreiteiras e de políticos, na visão da força-tarefa.

Uma das ideias centrais dos procuradores era de que havia um desequilíbrio entre as garantias que a Justiça oferecia ao réu e aquelas que cabiam à sociedade. Um texto do procurador Douglas Fischer, que atuou na Lava Jato em Brasília, apontava esse desequilíbrio e serviu de guia teórico dos procuradores.

Como a balança pendia para os poderosos, que podiam contratar bons advogados, o resultado era a impunidade. Só 3% dos crimes de corrupção eram punidos, diz pesquisa de Carlos Higino de Alencar e Ivo Gico Jr.

Segundo Pozzobon e Fischer, a Lava Jato mudou parcialmente esse cenário. "A Lava Jato mostra que, em determinados casos, é possível reverter a impunidade, mas a regra do crime de colarinho branco continua sendo a falta de punição", diz Pozzobon.

Segundo ele, pode ter havido equívocos em três anos e meio de investigação, mas não arbitrariedade e violação de direitos.

"Não quero a violação de garantias. Se fizéssemos algo errado, a operação toda seria anulada", afirma Fischer. Ele diz defender o equilíbrio entre a garantia do réu e a garantia para a sociedade de que crimes serão punidos.

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