Documento aponta dados gravíssimos em relação ao perfil das 28 mortes e duas lesões graves por intervenção de agente do Estado / Divulgação/SSP
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“Apontamos a centralidade das operações-vingança na letalidade das operações policiais e que, como uma espécie de vingança institucional, essas ações não deveriam fazer parte do repertório de ação policial em um Estado de Direito”. A informação é apenas parte do relatório de 106 páginas, realizado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF), intitulado ‘Vingança, uso da força e a utilização de provas dos casos de violência letal e lesões graves: dois anos da operação escudo/2023’.
O documento visa apoiar a instrução de medidas judiciais sobre a operação quase sem precedentes no Estado. Ele foi apresentado no dia 28 último, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em Santos, em evento sob o tema Dois Anos da Operação Escudo – Debates Sobre a Memória, Justiça e Reparação.
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O relatório aponta que fica evidente que a Operação Escudo foi motivada pela vingança institucional contra a morte de um policial da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) – o segmento mais letal da Polícia Militar de São Paulo. O policial morto, segundo apurado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), foi Patrick Bastos Reis, do 1º Batalhão de Choque, no Morro da Vila Júlia, Guarujá/SP.
Revela que a operação foi iniciada a partir de ordens do Alto Comando sem o devido planejamento ou trabalho prévio de inteligência, designando policiais para sair em operação enquanto ainda atendiam o velório do colega e se encontravam, portanto, sob forte emoção.
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Segundo aponta o documento, a morte de mais dois policiais em momento posterior, quando a operação já se encontrava em curso, desencadeou novos episódios de retaliação indiscriminada contra a população de vastas regiões.
Também que caracterizou-se pela realização de disparos de fuzil por parte da polícia na maioria dos casos, sendo que dentre as 30 armas apreendidas, supostamente em posse das vítimas, apenas uma era de grosso calibre, sendo todas as demais pistolas ou revólveres, dado que revela a desproporcionalidade do uso da força.
“Em 40% dos casos não houve comprovação de que as armas da vítima foram disparadas e em dois casos, a apreensão das armas foi forjada, segundo o Ministério Público. As vítimas fatais foram alvejadas com, em média 3,2 tiros, sendo que nenhum policial foi morto ou alvejado nesses nos 28 casos”, informa.
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O documento aponta dados gravíssimos em relação ao perfil das 28 mortes e duas lesões graves, e sua maioria é formada por pessoas negras e pobres. “Identificamos que a aderência ao perfil dos grupos mais sujeitos à suspeição policial discriminatória favorece a sua caracterização como criminosos e o baixo empenho institucional para a apuração das circunstâncias de suas mortes. Além disso, dentre as 28 vítimas há dois adolescentes e oito pessoas em situação de extrema vulnerabilidade – seis apresentavam uso abusivo de drogas, quatro estavam em situação de rua e dois em sofrimento mental”.
O relatório ainda desperta a atenção sobre casos em que grande quantidade de drogas foi supostamente apreendida em posse de vítimas que, segundo seus familiares, estavam em situação de rua e vendiam quaisquer objetos em sua posse para comprar drogas, de forma que o crime organizado jamais lhes confiaria a guarda de drogas. E mais: o documento revela policiais teriam acessado previamente a ficha criminal de indivíduos posteriormente mortos.
Outra questão sensível foi a de que os argumentos de “fundada suspeita”, apresentados pelos policiais, amparavam-se na estigmatização de amplos territórios como “áreas de perigo”, colocando todos os seus moradores como em “atitude suspeita” ao ponto de justificar uma invasão de domicílio devido ao choro de um bebê dentro da casa.
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Identificou-se, no relatório, falhas sistêmicas na produção de provas que justificassem as mortes. Por exemplo, casos em que corpos já haviam sido removidos sob alegação de prestação de socorro, sendo que apenas um chegou ainda com vida no hospital.
“As perícias do local realizadas apresentam dados pouco contundentes, devido também à baixa preservação do local do fato, ausência de croqui e ausência de dados, fotografias e descrições que possibilitem localizar os vestígios encontrados na cena, incluindo a arma alegada como usada pela vítima”, aponta o documento.
Ainda conforme o documento, os laudos de necropsia, por sua vez, pouco contribuem para a reconstrução dos fatos, porque suas descrições de lesões não são analisadas em conjunto com outras evidências materiais e orais.
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“A retirada das vestimentas dos mortos também comprometeu a análise em muitos casos. As perícias nas vestes e mochilas apreendidas, importantes evidências, incorrem em graves falhas de cadeia de custódia descontextualização do local de apreensão na cena do fato”.
Por fim, houve envio de imagens válidas de câmeras Operacionais Portáteis somente em 14,7% dos casos, porque na maioria dos casos o Batalhão não dispunha desses dispositivos, em outros estavam descarregados e em uma menor parcela, houve obstrução das imagens. Isso evidencia, segundo apurado, o desmonte de uma política que chegou a obter importante êxito na redução da violência de Estado e proteção aos policiais.
Em todos os casos foi oportunizado aos policiais envolvidos apresentarem as suas versões em depoimento, sendo estas as provas de maior peso utilizadas pelos promotores nos casos com pedido de arquivamento. Já os depoimentos dos familiares e demais testemunhas foram, em muitos casos, desconsiderados e relatos sobre a existência de outras testemunhas dos fatos não desencadearam diligências para tentar localizá-las.
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Foi firmado um Acordo de Cooperação Técnica entre o GENI-UFF e a Defensoria Pública estadual, no âmbito do Projeto Mirante1, para análise e construção de dados sobre as Operações Escudo e Verão (2023/2024). O Governo do Estado não se manifestou sobre o relatório.
Vale lembrar que, em novembro de 2024, ano seguinte à Operação Escudo, o Diário publicou a triste história envolvendo a morte do menino Ryan da Silva Andrade Santos, de apenas quatro anos, após uma troca de tiros entre policiais militares e criminosos no morro do São Bento, em Santos.
Leonel Andrade dos Santos, pai de Ryan, também faleceu após ser atingido por ‘bala perdida’, em fevereiro do mesmo ano, na Operação Verão, deflagrada pelo Governo de São Paulo. Em 40 dias de ações, foram 45 mortes.
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O menino estava brincando em uma rua da comunidade e foi atingido. Ele teria sido socorrido ao hospital mas não resistiu aos ferimentos. A Polícia civil investiga o caso para descobrir de onde foram os disparos que resultaram na morte do menino.
Há época, coronel Emerson Massera, porta-voz da PM Paulista, durante coletiva no Comando Geral da PM, informou que provavelmente partiu da arma da Polícia Militar a bala que atingiu Ryan.
Em 2025, situações semelhantes se repetem. Nesta segunda-feira (4), às 19 horas, na Câmara de Santos, por exemplo, será realizada uma audiência pública sob tema Violência Policial na Periferia – Caso Matheus Lopes, que residia na Comunidade Casinhas, na Zona Noroeste, em Santos. O rapaz, de 21 anos, foi baleado por policiais do Batalhão de Operações Especial de Polícia (Baep), no último dia 8.
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Como nas manifestações públicas anteriores, a família de Matheus e os vizinhos garantem que o rapaz é inocente. Matheus é ajudante de pedreiro e também atua como funcionário em um ferro-velho, sendo reconhecido como um jovem trabalhador e comprometido com suas responsabilidades.
Matheus foi baleado e levado para o Hospital Vicentino, em São Vicente, onde ficou internado sob vigilância policial. O tiro quase resultou em sua morte. Segundo a família, ele também trabalhava em uma obra do condomínio em que reside o prefeito Rogério Santos.
A família revela que apesar da gravidade do ferimento, no dia 18 último, ele recebeu alta médica e imediatamente após a liberação hospitalar, foi encaminhado diretamente ao 5º Distrito Policial de Santos sem o devido acompanhamento médico e sem acesso ao tratamento adequado. O rapaz se encontra no Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Vicente.
Durante a investida, os policiais apreenderam armas e drogas e também três homens – incluindo Matheus - e um adolescente de 17 anos. Segundo a versão policial, Matheus foi o único baleado por estar armado e atentar contra a vida dos policiais. O tiro entrou pelo abdômen, saiu pela perna e perfurou a artéria femoral. Matheus foi encaminhado ao hospital pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
Pessoas presentes informam que a polícia entrou na comunidade atirando, o que gerou pânico, pois as ruas e vielas estavam cheias de crianças brincando, adolescentes empinando pipa como é natural num dia de domingo.
No tumulto e correria, a avó de Matheus ouviu os gritos do neto que havia sido baleado pelos policiais, conforme vídeo postado nas redes sociais, em que ela começa a gritar e pedir por ajuda, alegando que Matheus nada tinha a ver com a situação revelada pela polícia.
A vereadora Débora Camilo (Psol) se manifestou na Câmara. “A família está usando a Tribuna Cidadã justamente para levar informação para todos os vereadores e para a sociedade. Não é a primeira e não será a última vez. A gente está falando de um jovem trabalhador que quase perdeu a vida. É preciso mobilização da sociedade para que ele seja solto, porque ele não é bandido e precisa estar com a família”.
O 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), aponta que dentre as cidades com mais de 100 mil habitantes, Santos e São Vicente têm a marca de 66% de todas as mortes provocadas por intervenção policial — duas a cada três. Esses dados reforçam o impacto da Operação Verão realizada pela Polícia Militar de São Paulo.
A operação matou 56 pessoas em naquele ano e é considerada uma das mais letais da história no estado. A mais letal é a do Carandiru — chacina que matou 111 pessoas no ano de 1992. O Brasil registrou 6.243 mortes em decorrências de violência policial seja de civis ou de militares, da ativa ou não, ainda em 2024.