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Papo de Domingo

'Precisamos ter voz. É só querer nos ouvir', diz menina que escapou de exploração sexual

Maria (nome fictício) hoje com 18 anos, conheceu várias meninas e meninos que não conseguiram resistir, como sua amiga que faleceu no Hospital dos Estivadores após tentativa de suicídio.

Carlos Ratton

Publicado em 18/08/2019 às 08:10

Atualizado em 18/08/2019 às 09:26

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Maria descobriu muito cedo o que é a vida difícil e o que significa e falta de assistência em Santos, principalmente nos abrigos. / NAIR BUENO/DIÁRIO DO LITORAL

Ela foi largada aos 12 anos em um abrigo. Chegou a consumir e vender maconha nas ruas de Santos. Ingressou na Fundação Casa. Escapou de ser abusada sexualmente e, por sorte e personalidade forte, resistiu à forçada venda do corpo. Maria (nome fictício) hoje com 18 anos, conheceu várias meninas e meninos que não conseguiram resistir, como sua amiga que faleceu no Hospital dos Estivadores após tentativa de suicídio no Tô Ligado por não resistir à negligência dos abrigos e à invisibilidade da sociedade. Neste Papo de Domingo, ela conta o drama do atendimento às crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual em Santos.

Diário do Litoral - Você foi abandonada por quem?

Maria - Minha avó adotiva. Ela tinha um patamar de vida bom, mas desistiu de me criar. Ela me deixou num abrigo da Prefeitura de Santos e nunca mais voltou. Minha mãe está presa em Franco da Rocha. Abrigada, eu conheci o mundo da forma que ele é. Conheci drogas, sexo, álcool e rolês.

Diário - Mas os abrigos não teriam que proteger?

Maria - Eu diria que abrigo em Santos é uma fachada. O cuidar não existe. Se o menor quiser ele sai, usa droga e volta. Você convive com pessoas desconhecidas, lida com o mau humor de funcionários e não consegue tirar documentos, nem para se matricular na escola. Se os funcionários não quiserem, você não consegue nada. Eu passei por vários abrigos e nenhum deu o apoio que eu precisava.

Diário - O que é pior?

Maria - Descaso e a falta de oferecer oportunidade. O tratamento psicológico é precário. É mais fácil alguém me ouvir fora do que dentro do abrigo. Não há cursos, atividades e nem perspectivas de futuro trabalho. Fiquei seis anos em abrigo e nunca vi a prefeitura os fiscalizando. Mal tem roupa. Fui para a Fundação Casa após ser denunciada pela direção do abrigo. Era só uma briga comum e fui denunciada por tentativa de homicídio. Fiquei sete meses lidando com menores que matam e traficam. A outra está até hoje na Fundação.

Diário - Quem te levou às drogas?

Maria - Minha mãe. Eu a encontrava na rua. Eu chegava no abrigo e eles sabiam que eu consumia. Só exigiam que eu retornasse no horário determinado. Depois, comecei a vender pois via outras meninas na rua com roupas e tênis legais e eu não tinha. Então, eu me arriscava vendendo drogas em portas de escolas. Eu não tinha noção do que fazia.

Diário - Você nunca foi assediada?

Maria - Sim, na rua há muitos aliciadores. Mas nunca cheguei as vias de fato (de vender o corpo). Já tentaram me explorar. No abrigo, aos 14 anos, um funcionário chegou a oferecer droga e dinheiro para eu ir ao motel com ele. Ele não trabalha mais lá. Conheço muitas que não resistiram. Se você andar pela praia, vai ver algumas delas procurando alguém. Uma amiga, que mantenho contato até hoje, acabou tendo uma filha após ser explorada sexualmente. A criança foi tirada dela, que não consegue trabalho. Ela vive pedindo ajuda nos equipamentos públicos. Outra foi explorada pelo próprio pai e o abrigo a mandou de volta para ele.

Diário - O que elas necessitam?

Maria - Muitas precisam de R$ 20,00. Outras, comida ou baseado (maconha). Meninas de 15 e 16 anos nessa situação. Elas são de abrigo, são acompanhadas pelo Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), pelo Cras (Centro de Referência de Assistência Social). Nenhum desses equipamentos têm estrutura para assistir as crianças e adolescentes. Eu fumei maconha e dormi na rua por vários anos. Eu me tratei no Tô Ligado e só recebi ajuda da Erika Bismarchi (mestranda em Movimentos Sociais e Políticas Sociais).

Diário - Você deve ter corrido vários perigos.

Maria - Um dia, por volta das 23 horas, o abrigo proibiu minha entrada por conta do horário. Um cara de carro parou na minha frente e me ofereceu grana para eu acompanhá-lo. Eu chamei a polícia e, mesmo os policiais pedindo, me proibiram de entrar. Ocorreu o mesmo com outra menina e ela acabou sendo levada a um motel. Eu convivi com a menina que tentou se enforcar no Tô Ligado e ela só precisava de atenção. Acabou morrendo. Precisamos ter voz. É só querer nos ouvir.

DL - Meninos também sofrem ou só as meninas não recebem cuidados?

Maria - Principalmente os homossexuais. Acabam indo para rua para ser explorados. Os abrigos mantém meninos e meninas juntos. Se quiser ter atos sexual, é fácil. A gente só assiste televisão. Não tem atividade cultural ou esportiva. Carinho e conforto a gente tem com pessoas de fora. Eu, aos 12 anos, tinha dois caminhos: roubar, traficar ou buscar uma atividade decente. Hoje, aos 18 anos, faço brigadeiro para vender. Só consegui tirar documentos agora. A prefeitura tem condições de fazer um bom trabalho com os adolescentes dentro dos abrigos e equipamentos públicos. Não faz porque não quer. É só chamar que a gente explica como.

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