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Papo de Domingo

Papo de Domingo: ‘Um momento não explica a nossa história’

Diário do Litoral inicia série de entrevistas com especialistas de diversas áreas com o objetivo de entender o momento que vivemos enquanto sociedade e como nação

Rafaella Martinez

Publicado em 30/07/2017 às 11:30

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'A corrupção tem que ser combatida, óbvio. Mas não como um espetáculo, pois dessa forma ela desvia a percepção da gente do Brasil real, que mata mais que o Iraque', afirma Cancello / Divulgação

Corrupção, guerra de facções nos presídios do Brasil, falta de verba para áreas prioritárias e desemprego recorde: há quem acredite que a principal crise que atinge o País não é a econômica e sim a moral. Afinal, estamos vivendo uma época de crise de valores? O que todos os acontecimentos cotidianos narrados nesse texto dizem sobre o momento que passamos enquanto sociedade e como ­nação?

Tentando responder a esses questionamentos, o Diário do Litoral dá início neste domingo ao especial ‘Olhares sobre o nosso tempo’. Usaremos esse espaço para conversar com especialistas nas mais diversas áreas, além de representantes de religiões, para que cada um contribua como seu olhar sobre o nosso tempo. Esse espaço será aberto para que os leitores possam encaminhar suas sugestões de perguntas e fontes, além de comentários sobre as entrevistas já publicadas. Basta interagir conosco em nossa página: www.facebook.com/diariodolitoral.

Para dar início a série, conversamos com o psicólogo, psicoterapeuta, escritor e músico Luiz Antônio Guimarães Cancello. Trabalhando há mais de 40 anos com as emoções humanas, Cancello traçou um panorama sobre a forma como as denúncias de corrupção afetam nosso cotidiano e os processos históricos que culminaram com o nosso momento atual. Confira:

Diário do Litoral – O noticiário brasileiro está repleto de casos de corrupção. Isso contribui para que a sociedade perca a esperança em dias ­melhores?

Luiz Cancello – Eu acho que está havendo um equívoco. Existe um Brasil real que é um dos países mais violentos do mundo, com uma taxa de violência de 29 assassinatos por 100 mil habitantes por ano enquanto a média mundial é sete. Esse Brasil real tem também um dos piores índices de educação e todo mundo só fala da corrupção. Ela virou uma coisa midiática dentro do conceito de sociedade do espetáculo e também pelo lado do Ibope. A corrupção tem que ser combatida, óbvio. Mas não como um espetáculo, pois dessa forma ela desvia a percepção da gente do Brasil real, que mata mais que o Iraque e o Afeganistão. O Brasil que está formando uma geração de ignorantes, que tem uma juventude hipersexualizada e com a cultura em frangalhos. 

DL – O problema seria então a forma como a questão é tratada na mídia?

Cancello – Não é questão de maldar a mídia, mas analisar de que forma essa estrutura eleva esse espetáculo a um ponto que desvia a atenção das coisas maiores. Tem uma questão psicológica que é muito curiosa e se aplica principalmente às redes sociais, que é a questão da indignação: hoje todo mundo está indignado. A indignação é um estado de espírito muito bom e necessário enquanto ele proporciona uma ação. No entanto, o que vemos hoje é que a indignação está se transformando em um ódio descontrolado e ­irracional. 

DL – Nossas prioridades estão inversas?

Cancello - Há uma distorção muito grande na prioridade das coisas. Há coisas mais importantes com as quais precisamos nos preocupar como nação e a corrupção se tornou um tema absoluto. Eu moro do lado de uma escola. Quando eu vejo aqueles meninos de 15, 16 anos andando de bicicleta em cima da calçada onde estão andando idosos, eu fico mais triste do que quando eu leio as notícias da Lava jato. Porque ali é o germe. A transgressão começa aí. Ela está muito arraigada e a culpa é nossa, pois desenvolvemos uma ideia que a regra é uma coisa quadrada e que precisamos ser livres. Essa ideia de liberdade, em última instância, mata. Enquanto estamos fascinados pela ação dos grandes descumpridores de regras, estamos desatentos para onde nasce a coisa, que é nesse menino que quase atropela e mata um senhor na calçada e tantas outras coisas. Esse é só um exemplo.

DL – Sobre essa questão da sociedade do espetáculo, o senhor acha que as pessoas estão anestesiadas e acabam fechando os olhos para outros assuntos?

Cancello – Eu não diria anestesiadas, mas à medida que você tem uma lógica exclusivamente de mercado e a medida que esta notícia está dando Ibope, isso é uma coisa que se auto alimenta. Muitos jornais funcionam com algoritmos e os números sugerem qual a pauta que o jornal precisa fazer. Já é um Ibope automatizado, e dessa forma os grandes veículos vão formando mentalidades. A alienação deixa de ser um conceito antigo do operário da fábrica que vai apertando parafusos e vê só uma parte do processo, sem conseguir ver o processo inteiro, para se transformar em uma coisa sobre como você é comandado pela notícia que se destaca, sem ter conhecimento do todo. Soma-se a isso o fato das pessoas estarem com um pessimismo radicalizado em tudo.

DL – E por que as pessoas estão tão pessimistas?

Cancello – Existe uma questão que a gente pode descrever e outra que podemos estabelecer causas. A nossa tendência é mal descrever o fenômeno e já partir para a causa. A causa depende da percepção e, a não ser que seja medida por um método cientifico, é algo subjetivo. Pensando no nosso Brasil atual, parece evidente que poucas vezes a gente teve uma situação tão indefinida e isso não dá segurança para ninguém.

DL – E isso acaba impactando nos outros pontos sobre os quais conversamos, certo?

Cancello – Claro, mas isso não explica uma violência que vem de décadas, um péssimo sistema de ensino e uma compulsão em não cumprir as regras que vem de décadas. Isso não explica essas coisas, isso apenas afirma essas coisas. Um momento não explica a nossa história. Talvez a nossa história tenha desembocado nesse momento, mas isso não explica a nossa história. Temos que ser racionais e analíticos nesse momento para não cairmos em enganos. É por isso que muito analista político tem falado que estamos no momento ideal para aventureiros se apresentarem como salvadores. A outra questão desse foco absoluto sobre a corrupção é que é uma consequência fácil para desavisados que acreditam que esse é o problema do Brasil. Ela é um dos problemas, mas está longe de ser o maior.

DL- Parece difícil pedir racionalidade em um momento onde as pessoas estão tão extremistas...

Cancello – Com certeza. Nossa questão é histórica e uma das causas é a falta de presença do Estado. No mundo inteiro a violência começa a imperar onde o Estado não está presente. E o Estado estar presente não quer dizer ter polícia e sim ter escola, lazer, creche e posto de saúde. Toda uma estrutura. 

DL – Um caso recente despertou a atenção, que foi a greve dos polícias militares no Espírito Santo. Sem o policiamento, algumas pessoas saquearam lojas. O que esse fato revela sobre o nosso tempo?

Cancello – Essa transgressão está latente. Quando falamos da presença do Estado, essa é uma primeira providência desejável. Se você confiar que o momento histórico é tal e tem certeza que amanhã vai ter comida na mesa, você jamais se arriscaria a saquear um supermercado. Em outra análise, quando há uma forte presença do Estado, com uma educação eficaz, as pessoas iriam se sujeitar às regras e não seria preciso um policiamento para alguém deixar de jogar papel na rua. Esse é o nível de excelência de uma nação.

DL – O senhor considera que vivemos um momento de descrença ou de esperança?

Cancello – Acredito que vivemos um momento de incerteza. Eu interpretaria que uma das possíveis causas sobre o acontecimento no Espírito Santo é que a partir do momento em que você não tem confiança no futuro, você é capaz de fazer grandes transgressões. Onde não há presença do Estado, onde não há confiança e onde o futuro é incerto a sociedade caminha para o individualismo radical. 

DL – O senhor gostaria de acrescentar algo?

Luiz Cancello - Todo fenômeno complexo tem uma causa única e errada. É muito fácil e impulsivo estabelecer uma causa única e óbvia, de preferência colocando a culpa em alguém sobre um fenômeno extremamente complexo e que vem se desenvolvendo durante pelo menos o último século e meio. Só um estudo cuidadoso poderá fazer a gente entender e estabelecer uma ação para reverter tudo isso.

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