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Roupa suja se leva pra rua: o re-conhecimento de onde vi(e)mos

Quase 10 anos após sua data de criação, o espetáculo Hygiene volta a se apresentar em Santos, durante o Festa 57

Publicado em 06/09/2015 às 12:42

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Simone Carleto

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Depois de praticamente 10 anos da data de sua criação, o espetáculo Hygiene volta a se apresentar em Santos, durante o Festa 57, que ocorre neste setembro de 2015. No Grupo XIX de Teatro, coletivo responsável pela criação, dois artistas de Santos: Luis Fernando Marques e Paulo Celestino. A edição do Festival, que tem como tema a luta pela Lei de Fomento ao Teatro em Santos, contou com as falas dos artistas, o primeiro diretor e o segundo ator do espetáculo, reiterando a importância da Lei, sem a qual o espetáculo e o grupo provavelmente não existiriam. A peça foi criada de modo colaborativo, uma das características da horizontalidade decorrente de novas formas de organização de grupos de teatro, a partir do sujeito histórico teatro de grupo. Assim, a ocupação da Vila Operária Maria Zélia, idealizada em 1917 por Jorge Street (1863-1939), é efetivada a partir do projeto ‘A Residência‘, contemplado pela edição 2004 da Lei de Fomento em São Paulo - além de outras ações importantes no período, contribuindo para esse tipo de intervenção cultural.

No dia chuvoso de 4 de setembro, a Companhia iniciou a apresentação, após distribuir algumas capas plásticas de chuva, no Centro Histórico de Santos, na região do Valongo, defronte à igreja Santo Antonio Valongo, que dá nome ao Largo. O contexto apresentado é o período de  transição do século XIX para o século XX, no Rio de Janeiro, em que, por conta de epidemia da febre amarela, entre outras doenças, o movimento higienista passa a defender a ideia de moradia unifamiliar, em “substituição” aos cortiços, nos quais famílias viviam de modo coletivizado, com trocas sócio-culturais determinantes para a configuração da sociedade brasileira. Imigrantes de diversos países, como Itália, Portugal, Espanha, Polônia, trabalhavam nas cidades, buscando sobreviver: operários, prostitutas, vendedores, médicos. O que estava por trás do discurso higienista era o genocídio, já que cortiços foram demolidos e as pessoas brutalmente mortas, o que dificilmente aparece na história, que normalmente apresenta para estes fatos o nome de “reforma".

História social é trazida à tona através da peça (Foto: Rodrigo Morales)

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Algumas cenas foram destaques no que se refere à relação estabelecida entre obra e público. A penúltima cena, em que o médico anuncia a demolição do cortiço (em tempo pretérito, dada a estrutura épica do espetáculo), contou com o soar de uma sirene, que pareceu fazer parte da trilha sonora do espetáculo, atribuindo à representação na Casa da Frontaria Azulada um ar bucólico. Numa das cenas apresentadas na trilha do Bonde, que irrompeu a cena, prevaleceu o caráter cômico do diálogo entre o Português, chamado de explorador pelo Italiano. Nesta, os dois inserem galanteios a duas moças do público, o que inclui uma intervenção poética a respeito do local de moradia e a felicidade. Pouco antes, a cena anterior mostrou Carmela, a italiana que trazia num grande cesto as roupas misturadas de diversos moradores do cortiço, entre as peças um casaquinho de criança, todo estropiado, o que faz com que se imagine o estado daquela que o vestiu um dia. A personagem tem o mesmo nome de minha avó materna, a quem chamo carinhosamente de Bela. Ela, que hoje vive à margem, na periferia física e simbólica do sistema, certamente teria se emocionado profundamente se visse a cena. Saber que as personagens, no epílogo, são antigos moradores dos cortiços, destruídos em 1889, juntamente com famílias, é chocante e infelizmente real nos nossos dias. Ainda não existem condições mínimas de vida para todas as pessoas. Trabalhos artísticos consequentes como este são ações fundamentais para que a história social seja trazida à tona, atribuindo significado ao ato de contar histórias: para que a memória seja viva e as situações sejam reconhecidas como possíveis de mudar.

*Artista pedagoga, pesquisadora teatral e coordenadora da Escola Viva de Artes Cênicas de Guarulhos; doutoranda no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

 

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