Bruno Fracchia*
Assistir a grupos como a Cia. Livre (uma das mais consagradas companhias do Estado de São Paulo) é uma obrigação de qualquer artista teatral. Por ter um trabalho referencial, é de extrema importância a presença deste grupo no FESTA57 com seu mais novo espetáculo, ‘Maria que virou Jonas’.
Apresentando uma trama que parte da história de mudança de sexo citada por Montaigne no Ensaio XXI, ‘Da Força da Imaginação’, a peça utiliza entre seus recursos estéticos práticas já bem conhecidas da diretora do espetáculo: o metateatro (também praticado em recentes trabalhos da encenadora fora da Cia. Livre) e o sempre virtuoso desenho de luz.
Partindo do citado ensaio de Montaigne, nesta peça a Cia. Livre parece levar aos palcos uma tese acadêmica: como introdução, há o prólogo com apresentação de um posicionamento ideológico, seguida da explicação do ponto de vista adotado pelos artistas (o equivalente a justificativa de uma dissertação). Já o desenvolvimento, em andamento lento (não assumido como proposta), é repleto de reiterações (são comuns frases e diálogos que repetem ideias que acabaram de serem ditas).
Por fim, há uma didática conclusão (como se observa em frases como “eu estava aqui o tempo todo”, dita pelo Marido – personagem de pouca gradação dramática – ao explicar uma determinada transformação). O desfecho conta com um happy end de casal romântico de telenovela, corente com diálogos construídos com forte tinta televisiva.
A carência de síntese dramatúrgica e a falta de unidade nas opções da encenação são lidas como uma inesperada falta de justeza nas opções estéticas desta obra. Desta vez, o discurso da Cia. Livre, sempre bem fundamentado academicamente, parece ter ficado no campo das ideias. Uma atriz caracterizada com uma peruca teatral dizer “nós, travestis” e um intérprete apenas evocar no discurso os homossexuais e lésbicas vítimas de violência, mas os mantendo imageticamente fora de cena, são contradições maiores dos que a de Gianfranceso Guarnieri abordando o universo da greve em Eles não usam Black-tie, mas a mantendo fora de cena, situando tudo na individualidade de um lar. Uma diferença é que naquela época a simples introdução do assunto já era extremamente inovador, dada sua ausência no universo teatral brasileiro.
É inegável que a obra é muito rica, fornecendo material para profundos estudos acadêmicos. Mas dadas as limitações de espaço, concluímos reiterando a importância de se assistir a grupos como a Cia. Livre. E não esquecendo que, embora haja a existência de demandas muito bem vistas por avaliadores de Fomentos e editais, devemos sempre nos perguntar se realmente queremos tratar destes assuntos ou apenas garantir chances maiores em processos de Fomentos.
*Bacharel em Artes Cênicas pela USP, Bruno Fracchia é ator, professor e dramaturgo.