A arte que retrata a realidade do (des)espetáculo da miséria

Encenação de Campinas faz uma reflexão sobre os dramas vivenciados pelas pessoas em situação de rua

19 AGO 2016 • POR • 11h05
‘O circo da Miséria’ foi apresentado no dia 18 de agosto no teatro do Sindicato dos Petroleiros - Rafaella Martinez/DL

No palco*, o cobertor de retalhos e o carrinho repleto de coisas aparentemente inúteis. Com a roupa surrada, entra em cena o palhaço Magrólhos, trazendo no bolso a fome e o pó das estradas. Com o sorriso banguela, diz olá para todos os miseráveis da plateia. Quem são eles? Quem somos nós?

O processo de montagem da peça ‘Circo da Miséria’ teve início com as vivências do ator Jeff Vasques** nos projetos sociais que tinham como foco os adolescentes e as crianças em situação de rua. Nos últimos meses, o convívio acontece por meio das ações do Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (POP)de Campinas, onde ministra uma oficina de teatro. Foi lá que Vasques passou a dialogar com a realidade de quem dorme na rua e traduziu em forma de uma arte crítica e sagaz a falta de humanidade com os ‘invisíveis’.

Para o palco, o artista leva a referência dos palhaços de rua que tentam sobreviver questionando o status quo. O picadeiro de Magrólhos é o chão duro da praça e sua lona o céu estrelado. Na luta pela sobrevivência, ele revira o lixo, pede esmola e faz malabares com sacolas.

Em cena, a linha da pobreza deixa de ser imaginária para se tornar real. E é em torno dela que o personagem pula e dança, acompanhado pela plateia, afinal, quando cada um mudará de papel?

Ao término do espetáculo, o maltrapilho se reconhece como gente a partir de um toque. O contato físico permitido por meio de um encontro de mãos relembra Magrólhos de que ele ainda é um ser humano.

Na prática, o ator que dá vida ao palhaço sabe que tocar outra vida ainda é uma lição que por vezes parece estar longe demais. “Uma das maiores violências que eles sentem, talvez mais grave até mesmo que a fome, é a ausência de relacionamento com o mundo. Muitos estão há anos sem um toque, um contato ou um abraço. A maior miséria do mundo atual é a indiferença, que contribui de forma massiva para o isolamento”, pondera Jeff Vasques.

E sobre a miséria cotidiana, é inevitável associar o nome e a temática do espetáculo com o clássico ‘Os miseráveis’, de Victor Hugo. E parafraseando o prefácio do livro, publicado em 1861, “Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século - a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância - não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis". Espetáculos como o ‘Circo da Miséria’ também não.

* ‘O circo da Miséria’ foi apresentado no dia 18 de agosto no teatro do Sindicato dos Petroleiros, dentro da 1ª Mostra Intersindical de Teatro de Santos.

**Jeff Vasques é palhaço, poeta e acredita, como Drummond, na arte que faça acordar os homens e sonhar as crianças.