Artigo - Apenas 10 anos

É preciso criar políticas sólidas de proteção à criança, o que inclui não apenas a punição dos criminosos, mas também a presença efetiva dos responsáveis

22 AGO 2020 • POR • 06h52
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Por Francisco Marcelino

Minha filha mais velha está com 19 anos. Quando tinha 10, gostava de bichos de pelúcia, bonecas, de desenhar e escrever, cantar, assistir desenho animado. Sua irmã, que hoje tem 17, era a mesma coisa. Hoje ainda gostam de todas essas coisas. Outras paixões surgiram também, como assistir séries e estudar chinês. Com 10 anos, o meu garoto, hoje com 13 anos, tinha acabado de chegar na França. Em meio à saudade do Brasil, foram nos jogos de criança, como pega-pega e futebol, que ele fez novos amigos.

Quanto a mim, quatro décadas me separam dos meus 10 anos, mas parece que foi ontem. Naquele mundo, sobrava pouco espaço para qualquer coisa além de futebol. Depois de voltar da escola, meu irmão e eu íamos atrás de alguma pelada num campo de várzea. Se estava muito frio ou chovendo demais, a gente jogava futebol de botão, pebolim ou trocava figurinhas de futebol. 

Mas, aos 10 anos, muitas crianças não têm o direito de ser criança. Foi o caso do meu pai. Desde os 7 anos, ele trabalhava na roça para o meu avô Francisco Marcelino, pai da minha mãe e seu futuro sogro. A comida era pouca, escola não existia, afeto e carinho familiar eram palavras que ainda não tinham entrado no dicionário da época. Aliás, até hoje afeto e carinho familiar são palavras sem serventia na maior parte dos lares brasileiros. 

É também o caso da criança do Espírito Santo. Vítima de estupro aos 10 anos de idade, foi chamada de assassina por ativistas de extrema-direita. Ou seja, foi vítima de novo.

Toda vida importa para a nossa Constituição. No caso do Espírito Santo, mãe e feto são igualmente importantes, mas havia risco para a mãe. Então, em vez de discutir os erros da família, da sociedade e do Estado brasileiro, culpa-se a vítima. Todos nós falhamos com essa menina e com outras que como ela não têm acesso à educação, saúde, alimentação, segurança, moradia e tantos bens palpáveis ou não. 

Desrespeitamos continuamente o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, que estabelece que família, comunidade, sociedade em geral e o poder público devem assegurar, entre outros itens, a efetivação dos direitos referentes à dignidade e ao respeito. Embora o Estatuto, que é de 1990, seja bom, a rede de proteção que deveria circundar nossas crianças e adolescentes é frágil. 

Infelizmente, o caso da menina do Espírito Santo não é o primeiro, mas poderia servir para mudarmos essa realidade. Para isso, é preciso criar políticas sólidas de proteção à criança, o que inclui não apenas a punição dos criminosos, mas também a presença efetiva dos responsáveis — ou seja, família, sociedade e Estado. Nossa pequena foi abusada por quatro anos sem que a família, a sociedade e o Estado desconfiassem.

Não cansemos de repetir: apenas 10 anos de idade. 

Francisco Marcelino, escritor e cineasta