Um vereador pede, em plenário, para o presidente de um time de futebol comprar um jogador. Grosso modo, foi esse o efeito — nulo — da solicitação de dezenas de fiéis que, com faixas, cartazes fizeram com que o Legislativo santista apresentasse uma moção à Diocese de Santos para impedir a saída do padre Carlos de Miranda da Paróquia Nossa Senhora Aparecida.
Um integrante do movimento “Fica, Padre Carlos!” usou os cinco minutos reservados na Tribuna Cidadã para destacar a indignação da transferência do padre Carlos e também resumiu os avanços obtidos por ele junto à comunidade. Inflado pela presença dos fiéis, o presidente da Câmara, Manoel Constantino (PMDB), sugeriu que se elaborasse uma moção de apoio à permanência dele.
A iniciativa de Constantino extrapolou, na opinião de alguns vereadores, as atribuições do Legislativo. Uma das primeiras a apontar a irregularidade foi a vereadora Cassandra Maroni (PT).
Ao iniciar sua fala, a parlamentar alertou aos fiéis que estavam no Plenário Oswaldo De Rosis: “Talvez a minha fala não caia no coração de vocês”. Cassandra foi preparando o terreno, informando que teve formação católica, para só depois pôr o dedo na ferida, esclarecendo não ser “tarefa republicana da Câmara “ interferir em uma decisão da Diocese de Santos. “Não podemos nos manifestar em relação a uma questão hierárquica”, assinalou, lembrando que, segundo a Constituição Federal, “o estado é laico em todos os poderes”.
Cassandra ainda explicou, quase que didaticamente: “Nossa função é garantir a palavra de vocês”, disse, referindo-se ao uso da Tribuna Cidadã. Por ter esse entendimento, ela afirmou que assinaria uma moção, à parte, como cidadã, mas não poderia fazer isso como vereadora.
‘Voz de Deus’
A parlamentar do PT foi voz quase solitária em plenário. Braz Antunes (PPS), logo em seguida, foi logo decretando: “A voz do povo é a voz de Deus. É essa a mensagem que deixamos para dom Jacyr”, disse, referindo-se ao bispo diocesano, dom Jacyr Francisco Braido, responsável pela troca de padres na Diocese, que será implantada no dia 15 de janeiro.
Fábio Alexandre Nunes, o Professor Fabião (PSB), não se contentou apenas em defender a permanência de padre Carlos com as palavras. Fez questão de amarrar uma faixa com os dizeres “Fica, Padre Carlos!” na testa.
Benedito Furtado (PSB) subiu o tom das críticas: “O bispo é bispo, e não é Deus. Ele age como um Deus. Não ouve a comunidade”.
Vale à pena ressaltar o cenário em que se deu a discussão: uma imagem de Nossa Senhora Aparecida já tinha sido colocada sobre a Mesa Diretora. Quase na frente de Adilson Júnior (PT), que é evangélico. Ele, porém, procurou não demonstrar constrangimento. “Sou amigo da família do padre”, fez questão de comentar. E todas as sessões do Legislativo, respeitando o Artigo 73 do Regimento Interno, começam obrigatoriamente com a expressão “Sob a proteção de Deus, declaro aberta a presente sessão”.
“Vivemos um estado teísta, porém laico”
É o que diz o professor da Unimonte, escritor e filósofo Diego Monsalvo, em entrevista ao DL.
Diário do Litoral - A “interferência” no estado laico é antiga no Brasil?
Diego Monsalvo - Sim, inclusive já foi muito mais, porém, cabe ressaltar que não é bem uma interferência. A manifestação e o amparo político para tais, seja de qualquer matiz religiosa, são válidos e ajudam a oxigenar a democracia. O que não podemos é transformar um regime democrático em refém de opiniões teocráticas, muitas vezes, interesseiras e infundadas do ponto de vista das garantias legais de igualdade para todos.
DL - Onde ocorre com mais frequência, em que região, em que tipo de situação?
Monsalvo - É difícil dizer, uma vez que são muitas as variáveis para uma análise mais aprofundada; porém, em assuntos que dizem respeito à moral (modos, hábitos e costumes), a participação religiosa é mais intensa. Há uma razoabilidade nisso, uma vez que as religiões permeiam-se por valores (revistos de tempos em tempos) que dão ou tentam dar um sentido mais profundo à vida humana.
DL - Qual sua opinião do estado laico? Tem, mesmo nas sociedades latinas, que estar assegurado na Constituição, como é nosso caso?
Monsalvo - O estado laico é, tão somente, um Estado que não professa esta ou aquela fé ou ideologia religiosa, mas pode garantir e se guiar pela tradição cultural dum povo que foi forjado e construído dentro de valores, práticas que dão imensa importância à religiosidade. É o nosso caso, no preâmbulo de nossa Constituição, Deus aparece como figura jurídica maior, uma vez que seus auspícios são evocados a bem da vida coletiva, toda ela garantida nesta mesma Carta Magna. Vivemos em um estado teísta, porém laico (sem nenhuma religião oficial).
DL - O Regimento Interno da Câmara de Santos determina, no parágrafo 3° do Artigo 73, o seguinte: “o presidente abrirá a sessão, dizendo: Sob a proteção de Deus, declaro aberta a presente sessão”. Que avaliação o senhor faz dessa determinação?
Monsalvo - Acredito que segue os parâmetros consagrados no preâmbulo de nossa Constituição, a evocação de Deus como figura e/ou idéia inspiradora do bem coletivo, sem distinção de pessoas e credos.
DL - Qual sua avaliação do episódio ocorrido na Câmara?
Monsalvo - Especificamente, no caso em questão, é de se observar o seguinte: a população frequentadora da Paróquia da Aparecida tem todo direito à livre manifestação. Porém, a Igreja Católica Romana é, por natureza, hierárquica, tendo, assim, no bispo diocesano a figura continuada dos apóstolos de Cristo. O que está havendo, portanto, me parece um desrespeito à autoridade do bispo a começar pelo padre em questão, dado que a vocação sacerdotal é investida de missionariedade, transitoriedade; o que implica, no mínimo, um despreparo da comunidade e de seu pároco (vigário do bispo) em entender e aceitar esta dupla relação Católica — a missionariedade do sacerdote e a hierarquia da Igreja. E quando a Câmara faz tal moção, parece tomar partido por um erro de análise doutrinária. Caberia ao padre vir a público e demonstrar sua missão de vocacionado a ir servir a Deus aonde quer que seja e não semear tamanha discórdia entre comunidade, cidadãos santistas e travamento das votações de projetos de importância infinitamente maior.
Fica, Padre Carlos!
15 mil assinaturas até agora. Essa é a quantidade de católicos que assinaram o abaixo-assinado pela não saída do Padre Carlos Miranda da Paróquia Nossa Senhora Aparecida. A campanha “Fica, Padre Carlos” já realizou diversas manifestações pela Cidade em prol da permanência do pároco.
“Mais de 500 pessoas participam das nossas ações. Além do abaixo-assinado, recebemos o apoio da Câmara Municipal e da Sociedade de Melhoramentos da Aparecida”, explicou Alexandre Borgonovi, idealizador do movimento.
O objetivo é sensibilizar o bispo diocesano Dom Jacyr Braido para que ele revogue a transferência do Padre Carlos. O pároco permanece na comunidade até o dia 31 de dezembro. A partir do dia 15 de janeiro, ele e mais dez padres da Região irão para outras paróquias. O futuro do padre da Aparecida é a Paróquia Nossa Senhora da Lapa, em Cubatão. Já na Paróquia Nossa Senhora Aparecida assumirá o Padre João Chungath, que então comandava a Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora, no Parque das Bandeiras, em São Vicente.
“Ainda temos muitos projetos para realizar por aqui. O padre não quer ir, mas é obrigado a cumprir as normas da Diocese porque fez um juramento”, comenta Borgonovi.
A Diocese de Santos já declarou para a imprensa local que a mudança de paróquia é uma prática comum. Mesmo assim, a comunidade vai continuar tentando. “Vamos fazer uma passeata na orla da praia, vamos fazer um abraço coletivo e vamos fazer um Cerco de Jericó, sete dias de oração pela permanência do padre na paróquia”, garantiu Borgonovi.
Continua depois da publicidade