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Em 2025, 69,9% das domésticas são negras: caso Miguel escancara racismo

Mesmo após cinco anos, caso Miguel ainda expõe desigualdades históricas no país

Luna Almeida

Publicado em 14/07/2025 às 18:40

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69,9% dos trabalhadores domésticos no país são mulheres negras / Pixabay

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Cinco anos após a trágica morte do menino Miguel Otávio, de apenas 5 anos, que caiu do nono andar de um edifício de luxo no Recife enquanto estava sob a responsabilidade da empregadora de sua mãe, o episódio continua a ser um retrato da permanência do racismo estrutural nas relações laborais brasileiras. 

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Impedida de cumprir suas funções remotamente durante o auge da pandemia, Mirtes Renata levou o filho ao local de trabalho, onde ele foi deixado aos cuidados da patroa, em uma dinâmica marcada pela negligência e pela hierarquia racial. 

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Recentemente, Mirtes concluiu seu Trabalho de Conclusão de Curso com a temática “escravidão contemporânea”, dedicando a pesquisa à memória do filho.

O professor Odair Dias Filho, da ESAMC Santos, que se dedica ao estudo do racismo estrutural, considera a escolha do tema altamente simbólica. “O serviço doméstico ainda está majoritariamente nas mãos de mulheres negras, muitas vezes em condições que beiram o servilismo”, afirma. 

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Segundo dados da PNAD Contínua de 2025, divulgados pelo Ipea em conjunto com o Ministério da Igualdade Racial, 69,9% dos trabalhadores domésticos no país são mulheres negras. 

Além disso, estudo do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Cedra) aponta que essas profissionais recebem em média 86,1% do salário de suas colegas brancas. 

Para o professor, isso é resultado de um processo histórico que se perpetua: o fim formal da escravidão nunca foi acompanhado de mecanismos reparatórios. “Nem a Constituição de 1824, nem a de 1891 mencionaram a escravidão, tampouco criaram qualquer medida de inclusão para a população negra recém-liberta”, destaca.

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Com o fim da escravidão, o Brasil adotou políticas de incentivo à imigração europeia, com o objetivo de substituir a mão de obra negra por trabalhadores brancos, dentro de um projeto de branqueamento social. “Esse pacto da branquitude ainda está vivo, mesmo que silencioso”, explica Odair. 

Para ele, o caso de Miguel evidencia como essa estrutura se reproduz em pleno século XXI. 

O falso sentimento de afeto nas relações entre patroas brancas e empregadas negras esconde uma lógica de dominação. “A frase ‘minha patroa é boa’ revela mais do que gratidão; revela a naturalização de uma relação desigual que atravessa gerações”, completa.

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O racismo, afirma o docente, não é um comportamento isolado, mas um sistema enraizado nas instituições e na sociedade. “É um mecanismo de reprodução automática das desigualdades”, explica. Ele destaca que as elites econômicas brasileiras são, em muitos casos, descendentes diretas das famílias escravocratas, que apenas transferiram sua riqueza e poder para outros setores da economia. 

“O capital se manteve, a estrutura se manteve, apenas mudou de roupa”, pontua, citando pensadores como Clóvis Moura e Jacob Gorender para demonstrar que o Brasil nunca rompeu de fato com seu passado escravista, mas migrou de um sistema escravocrata para um modelo capitalista dependente, igualmente excludente.

A transformação da dor em resistência é, segundo Odair, o gesto mais poderoso que Mirtes poderia ter feito. Sua trajetória acadêmica é, ao mesmo tempo, uma denúncia e um ato de reexistência.

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 “A presença de mulheres negras em espaços como a universidade ainda é vista como exceção. Precisamos virar essa chave”, defende. Para ele, essa mudança começa no campo da educação, por meio do debate crítico e da valorização de intelectuais negros e negras.

Na sala de aula, o professor procura estimular o pensamento crítico entre os alunos, aproveitando a ementa da disciplina de Sociologia para discutir a formação social brasileira e os mecanismos que sustentam a desigualdade racial. 

“Na ESAMC, encontramos ferramentas essenciais para aprofundar esse tipo de reflexão, como a biblioteca, os laboratórios e o acesso à produção acadêmica”, relata. Segundo ele, a missão é fazer com que os estudantes reconheçam os vínculos entre passado e presente, desnaturalizando discursos dominantes. 

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“A consciência crítica não surge espontaneamente. Ela se forma no embate de ideias, na leitura e na disposição de ir além do senso comum.”

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