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Mais do que moradia, a vila se tornou símbolo da cultura operária, palco para a expressão cultural urbana e até cenário de prisão política durante o Estado Novo
Localizada no Belenzinho, na Zona Leste, a Vila Maria Zélia é considerada a primeira vila operária de São Paulo / Rodrigo Bertolino/Wikimedia Commons
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Na Zona Leste de São Paulo, mais especificamente no bairro do Belenzinho, há um espaço que guarda parte da história da industrialização paulista e das lutas sociais do século 20.
A Vila Maria Zélia foi construída para abrigar cerca de 2.500 funcionários da filial da Companhia Nacional de Tecidos da Juta, no início do século passado.
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Mais do que moradia, a vila se tornou símbolo da cultura operária, palco para a expressão cultural urbana e até cenário de prisão política durante o Estado Novo.
Hoje, o espaço preserva características arquitetônicas únicas e memórias que atravessam gerações.
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As vilas operárias foram um modelo de planejamento urbano que surgiu na virada do século 19 para o 20, em resposta ao crescimento da industrialização e às condições precárias dos cortiços.
Criadas por empresas para abrigar trabalhadores próximos às fábricas, ofereciam moradias sanitárias, escolas, armazéns e espaços de lazer.
São Paulo se modernizava com o avanço da lavoura cafeeira e a chegada das ferrovias, tornando bairros como Belenzinho polos operários. Nesse cenário, a Vila Maria Zélia destacou-se como a primeira vila operária planejada do estado, elaborada para unir moradia, trabalho e qualidade de vida.
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O projeto nasceu em 1912, por iniciativa do médico e industrial Jorge Street, dono da Tecelagem de Juta São João e fundador da Companhia Nacional de Tecidos da Juta. Inspirado em suas experiências europeias, Street contratou o arquiteto francês Paul Pedraurrieux para projetar a vila, que foi inaugurada em 1917.
Street buscava considerar a qualidade de vida dos trabalhadores, levando em conta famílias de diferentes tamanhos e questões de saúde, como água e esgoto encanados. Com essa visão, apesar do responsável pelo projeto ser Paul, todo o trabalho foi acompanhado por Street, que prezava pela manutenção do plano original.
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Distribuída em 11 ruas, a Maria Zélia contava com 198 casas de diferentes tamanhos, adequadas ao número de membros das famílias. O conjunto incluía ainda capela, farmácia, armazéns, praças, campo esportivo, coreto, consultórios médicos e até três escolas, sendo essas uma para meninos, outra para meninas e uma creche com jardim de infância.
Era um ambiente que buscava oferecer saúde, saneamento e educação gratuita aos filhos dos operários. Mas, apesar do discurso de justiça social, a vida na vila era rigidamente controlada: jornadas de 10 horas, ausência de férias e licença-maternidade, além de desigualdade salarial entre homens e mulheres e trabalho infantil.
Em 1924, endividado, Jorge Street vendeu a vila para Francisco Scarpa, que a rebatizou como Vila Scarpa.
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Depois, a propriedade passou à família Guinle, até ser confiscada pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI, atual INSS) na década de 1930, em razão de dívidas tributárias. A fábrica foi desativada em 1931, mas os moradores permaneceram sem pagar aluguel.
Entre 1936 e 1937, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, o complexo da antiga fábrica foi transformado em presídio político. Ali ficaram cerca de 700 detentos, entre comunistas, anarquistas, sindicalistas e intelectuais.
O local ficou conhecido como “Universidade Maria Zélia”, já que os prisioneiros organizavam leituras, bibliotecas improvisadas e até um jornal clandestino chamado O Juventude.
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Mas também foi palco de sofrimento: superlotação, fome, doenças e repressão. Em 21 de abril de 1937, quatro detentos foram mortos após uma tentativa de fuga, episódio lembrado como o “Massacre da Maria Zélia”.
A fábrica foi reaberta em 1939 pela Goodyear, que demoliu parte das construções originais. Já as casas permaneceram como residências, e a partir de 1968 os moradores puderam adquiri-las definitivamente.
A Vila Maria Zélia foi tombada pelo patrimônio estadual (Condephaat) e municipal (Conpresp) apenas em 1992. Apesar do reconhecimento, muitas construções originais foram modificadas ou descaracterizadas. Hoje, apenas 171 das originalmente 220 casas ainda mantêm traços da arquitetura de 1910.
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Alguns espaços, porém, resistem e continuam ativos: a Capela de São José está preservada; a antiga farmácia abriga desde 2004 o Grupo XIX de Teatro; e a Associação Cultural Vila Maria Zélia, formada por moradores, organiza eventos e visitações para manter viva a memória do lugar.
Mais de um século após sua fundação, a Vila Maria Zélia ainda vive. As casas continuam sendo ocupadas por famílias, enquanto seus espaços coletivos revelam tanto abandono quanto resistência. Parte das antigas escolas, armazéns e edifícios sociais pertencentes ao INSS estão em ruínas, sendo alvos de furtos e depredações.
Ainda assim, a vila segue atraindo pesquisadores, fotógrafos, artistas e turistas interessados em compreender um pedaço essencial da história de São Paulo.
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