Diário Mais

Vila operária escondida em SP resistiu à modernização, à ditadura e mantém charme europeu

Mais do que moradia, a vila se tornou símbolo da cultura operária, palco para a expressão cultural urbana e até cenário de prisão política durante o Estado Novo

Júlia Morgado

Publicado em 19/09/2025 às 19:33

Compartilhe:

Compartilhe no WhatsApp Compartilhe no Facebook Compartilhe no Twitter Compartilhe por E-mail

Localizada no Belenzinho, na Zona Leste, a Vila Maria Zélia é considerada a primeira vila operária de São Paulo / Rodrigo Bertolino/Wikimedia Commons

Continua depois da publicidade

Na Zona Leste de São Paulo, mais especificamente no bairro do Belenzinho, há um espaço que guarda parte da história da industrialização paulista e das lutas sociais do século 20. 

Faça parte do grupo do Diário no WhatsApp e Telegram.
Mantenha-se bem informado.

A Vila Maria Zélia foi construída para abrigar cerca de 2.500 funcionários da filial da Companhia Nacional de Tecidos da Juta, no início do século passado. 

Continua depois da publicidade

Leia Também

• Cidade brasileira que vive do luto garante o sustento de centenas de pessoas; conheça

• Conheça as praias do litoral de SP que fizeram história como cenário de novelas

• Conheça o paraíso brasileiro que está roubando o lugar do Caribe em viagens

Mais do que moradia, a vila se tornou símbolo da cultura operária, palco para a expressão cultural urbana e até cenário de prisão política durante o Estado Novo. 

Hoje, o espaço preserva características arquitetônicas únicas e memórias que atravessam gerações.

Continua depois da publicidade

O que eram as vilas operárias

As vilas operárias foram um modelo de planejamento urbano que surgiu na virada do século 19 para o 20, em resposta ao crescimento da industrialização e às condições precárias dos cortiços.

 Criadas por empresas para abrigar trabalhadores próximos às fábricas, ofereciam moradias sanitárias, escolas, armazéns e espaços de lazer.

São Paulo se modernizava com o avanço da lavoura cafeeira e a chegada das ferrovias, tornando bairros como Belenzinho polos operários. Nesse cenário, a Vila Maria Zélia destacou-se como a primeira vila operária planejada do estado, elaborada para unir moradia, trabalho e qualidade de vida.

Continua depois da publicidade

Conheça também a cidade no interior de SP que faz do Brasil um destino internacional na primavera.    

Fundação e construção: uma “cidade europeia” no Belenzinho

O projeto nasceu em 1912, por iniciativa do médico e industrial Jorge Street, dono da Tecelagem de Juta São João e fundador da Companhia Nacional de Tecidos da Juta. Inspirado em suas experiências europeias, Street contratou o arquiteto francês Paul Pedraurrieux para projetar a vila, que foi inaugurada em 1917.

Street buscava considerar a qualidade de vida dos trabalhadores, levando em conta famílias de diferentes tamanhos e questões de saúde, como água e esgoto encanados. Com essa visão, apesar do responsável pelo projeto ser Paul, todo o trabalho foi acompanhado por Street, que prezava pela manutenção do plano original.

Continua depois da publicidade

Distribuída em 11 ruas, a Maria Zélia contava com 198 casas de diferentes tamanhos, adequadas ao número de membros das famílias. O conjunto incluía ainda capela, farmácia, armazéns, praças, campo esportivo, coreto, consultórios médicos e até três escolas, sendo essas uma para meninos, outra para meninas e uma creche com jardim de infância.

Era um ambiente que buscava oferecer saúde, saneamento e educação gratuita aos filhos dos operários. Mas, apesar do discurso de justiça social, a vida na vila era rigidamente controlada: jornadas de 10 horas, ausência de férias e licença-maternidade, além de desigualdade salarial entre homens e mulheres e trabalho infantil.

Fabio Torquato mostra imagens da vila histórica:

Mudanças de dono e tempos difíceis

Em 1924, endividado, Jorge Street vendeu a vila para Francisco Scarpa, que a rebatizou como Vila Scarpa. 

Continua depois da publicidade

Depois, a propriedade passou à família Guinle, até ser confiscada pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI, atual INSS) na década de 1930, em razão de dívidas tributárias. A fábrica foi desativada em 1931, mas os moradores permaneceram sem pagar aluguel. 

Presídio Maria Zélia: a “universidade” dos presos políticos

Entre 1936 e 1937, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, o complexo da antiga fábrica foi transformado em presídio político. Ali ficaram cerca de 700 detentos, entre comunistas, anarquistas, sindicalistas e intelectuais.

O local ficou conhecido como “Universidade Maria Zélia”, já que os prisioneiros organizavam leituras, bibliotecas improvisadas e até um jornal clandestino chamado O Juventude. 

Continua depois da publicidade

Mas também foi palco de sofrimento: superlotação, fome, doenças e repressão. Em 21 de abril de 1937, quatro detentos foram mortos após uma tentativa de fuga, episódio lembrado como o “Massacre da Maria Zélia”.

Do tombamento à preservação

A fábrica foi reaberta em 1939 pela Goodyear, que demoliu parte das construções originais. Já as casas permaneceram como residências, e a partir de 1968 os moradores puderam adquiri-las definitivamente.

A Vila Maria Zélia foi tombada pelo patrimônio estadual (Condephaat) e municipal (Conpresp) apenas em 1992. Apesar do reconhecimento, muitas construções originais foram modificadas ou descaracterizadas. Hoje, apenas 171 das originalmente 220 casas ainda mantêm traços da arquitetura de 1910.

Continua depois da publicidade

Alguns espaços, porém, resistem e continuam ativos: a Capela de São José está preservada; a antiga farmácia abriga desde 2004 o Grupo XIX de Teatro; e a Associação Cultural Vila Maria Zélia, formada por moradores, organiza eventos e visitações para manter viva a memória do lugar.

Presídio da Maria Zélia em 1937, quando o espaço foi utilizado para abrigar presos políticos durante o Estado Novo/ Acervo Iconographia
Presídio da Maria Zélia em 1937, quando o espaço foi utilizado para abrigar presos políticos durante o Estado Novo/ Acervo Iconographia
Fachada da antiga Escola de Meninos, atualmente lacrada e sem visitação após um incêndio criminoso que comprometeu a estrutura/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Fachada da antiga Escola de Meninos, atualmente lacrada e sem visitação após um incêndio criminoso que comprometeu a estrutura/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Fachada da Escola de Meninas, um dos prédios originais da Vila Maria Zélia que hoje se encontra em ruínas/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Fachada da Escola de Meninas, um dos prédios originais da Vila Maria Zélia que hoje se encontra em ruínas/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Escadaria que levava ao piso superior da Escola de Meninas; vista interna com árvores crescendo nas ruínas; detalhe para grafite feito por Ju Violeta/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Escadaria que levava ao piso superior da Escola de Meninas; vista interna com árvores crescendo nas ruínas; detalhe para grafite feito por Ju Violeta/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Vista frontal da Capela São José, um dos edifícios mais preservados e ainda em funcionamento na Vila Maria Zélia/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Vista frontal da Capela São José, um dos edifícios mais preservados e ainda em funcionamento na Vila Maria Zélia/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Esquina da antiga farmácia da vila, hoje sede do Grupo XIX de Teatro; interior do espaço adaptado para atividades culturais/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Esquina da antiga farmácia da vila, hoje sede do Grupo XIX de Teatro; interior do espaço adaptado para atividades culturais/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Vista interna da antiga fábrica de calçados e chapéus, com maquinário ainda preservado em meio ao abandono/ CapozziBruno/Wikimedia Commons
Vista interna da antiga fábrica de calçados e chapéus, com maquinário ainda preservado em meio ao abandono/ CapozziBruno/Wikimedia Commons

Mais de um século após sua fundação, a Vila Maria Zélia ainda vive. As casas continuam sendo ocupadas por famílias, enquanto seus espaços coletivos revelam tanto abandono quanto resistência. Parte das antigas escolas, armazéns e edifícios sociais pertencentes ao INSS estão em ruínas, sendo alvos de furtos e depredações.

Ainda assim, a vila segue atraindo pesquisadores, fotógrafos, artistas e turistas interessados em compreender um pedaço essencial da história de São Paulo.

Continua depois da publicidade

Mais Sugestões

Conteúdos Recomendados

©2025 Diário do Litoral. Todos os Direitos Reservados.

Software