Diário Mais

Primeira 'Cidade do Saber' do mundo moldou o conhecimento moderno e sobreviveu a guerras

Centro do saber, das bibliotecas e da filosofia, a capital do Califado Abássida foi símbolo de erudição e diversidade e destruída duas vezes pela guerra

Júlia Morgado

Publicado em 04/11/2025 às 13:30

Compartilhe:

Compartilhe no WhatsApp Compartilhe no Facebook Compartilhe no Twitter Compartilhe por E-mail

A cidade que já foi o coração do conhecimento mundial e símbolo da resistência cultural do Oriente Médio / USACE/Wikimedia Commons

Continua depois da publicidade

Muito antes de Paris, Nova York ou Londres serem consideradas polos globais de conhecimento e cultura, uma cidade no coração do Oriente Médio já era chamada de “Cidade do Saber”. Trata-se de Bagdá, fundada em 762 d.C. pelo califa Al-Mansur, durante o auge do Califado Abássida, uma das mais influentes dinastias do mundo islâmico medieval.

Faça parte do grupo do Diário no WhatsApp e Telegram.
Mantenha-se bem informado.

Planejada em formato circular e cortada por avenidas concêntricas, Bagdá era conhecida como “Madinat al-Salam” — a Cidade da Paz, nome dado oficialmente à capital.

Continua depois da publicidade

Leia Também

• O segredo por trás do avião mais impressionante da história criado durante a Guerra Fria

• Descoberto sistema hidráulico que muda teoria sobre construção das Pirâmides do Egito

• Cidade no interior de SP, com mais de 400 anos de história, é considerada relíquia viva

No entanto, o nome “Bagdá” é mais antigo e remonta ao período pré-islâmico, possivelmente de origem persa: deriva de Bagh (“deus”) e dad (“dado” ou “presente”), significando “presente de Deus”. O termo já designava uma pequena vila agrícola na região antes da fundação da cidade abássida.

Dica de leitura: veja como está a Cosipa, uma das maiores siderúrgicas do litoral de SP.

Continua depois da publicidade

Um império moldado pelo saber: A era dourada islâmica 

Durante o chamado Período de Ouro Islâmico (séculos VIII a XIII), Bagdá se transformou no maior centro intelectual do mundo. O árabe tornou-se a língua universal da ciência, e foi ali que nasceu a lendária Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikma), fundada por volta do século IX.

Financiada pelos califas Harun Al-Rashid e Al-Mamun, a instituição reunia estudiosos de diversas religiões e origens, que traduziam textos do grego, do sânscrito e do persa — preservando e ampliando o conhecimento da Antiguidade.

Entre os nomes que marcaram a história estão Al-Khwarizmi, considerado o pai da álgebra e da computação moderna (o termo “algoritmo” vem de seu nome), e Al-Razi, pioneiro da medicina experimental e da química.

Continua depois da publicidade

Outro destaque foi Hunayn ibn Ishaq, tradutor de Hipócrates e Galeno, médicos que ajudaram a formar uma medicina mais racional e sistemática.

Além da Casa da Sabedoria, a cidade abrigava observatórios astronômicos, hospitais, bibliotecas públicas e escolas que funcionavam como universidades. O modelo de ensino e pesquisa desenvolvido ali influenciaria diretamente o Renascimento europeu, séculos depois.

Mapa histórico de Bagdá (séculos VIIIIX), mostra o plano circular original da cidade, conhecida como "A Cidade Redonda", às margens do rio Tigre/ Domínio público
Mapa histórico de Bagdá (séculos VIIIIX), mostra o plano circular original da cidade, conhecida como "A Cidade Redonda", às margens do rio Tigre/ Domínio público
Miniatura de 1237 de Yahyá al-Wasiti retrata estudiosos reunidos na biblioteca biblioteca abássida, em Bagdá, durante o auge da Casa da Sabedoria/ Domínio público
Miniatura de 1237 de Yahyá al-Wasiti retrata estudiosos reunidos na biblioteca biblioteca abássida, em Bagdá, durante o auge da Casa da Sabedoria/ Domínio público
Representação de Al-Mansur, o califa que fundou Bagdá em 762 d.C., planejando-a como o coração político e intelectual do mundo islâmico/ Domínio público
Representação de Al-Mansur, o califa que fundou Bagdá em 762 d.C., planejando-a como o coração político e intelectual do mundo islâmico/ Domínio público
Figuras centrais do Califado Abássida, Harun Al-Rashid e Al-Mamun, responsáveis pelo florescimento da Casa da Sabedoria e pelo incentivo à tradução de obras clássicas/ Domínio público
Figuras centrais do Califado Abássida, Harun Al-Rashid e Al-Mamun, responsáveis pelo florescimento da Casa da Sabedoria e pelo incentivo à tradução de obras clássicas/ Domínio público
Retratos artísticos de estudiosos que marcaram a ciência em Bagdá: Al-Khwarizmi, pai da álgebra, e Al-Razi, pioneiro da medicina experimental/ Michel Bakni/Wikimedia Commons/Domínio público
Retratos artísticos de estudiosos que marcaram a ciência em Bagdá: Al-Khwarizmi, pai da álgebra, e Al-Razi, pioneiro da medicina experimental/ Michel Bakni/Wikimedia Commons/Domínio público
Hunayn ibn Ishaq, Hipócrates e Galeno, três nomes que simbolizam o intercâmbio cultural de Bagdá: Hunayn traduziu para o árabe os textos de Hipócrates e Galeno, preservando a medicina grega/ Domínio público
Hunayn ibn Ishaq, Hipócrates e Galeno, três nomes que simbolizam o intercâmbio cultural de Bagdá: Hunayn traduziu para o árabe os textos de Hipócrates e Galeno, preservando a medicina grega/ Domínio público
Universidade de Bagdá, fundada em 1957, a instituição mantém vivo o legado intelectual da capital iraquiana, com programas de restauração e pesquisa/ Reprodução Facebook/جامعة بغداد
Universidade de Bagdá, fundada em 1957, a instituição mantém vivo o legado intelectual da capital iraquiana, com programas de restauração e pesquisa/ Reprodução Facebook/جامعة بغداد
Criada no século XIII, a Universidade Mustansiriya é uma das universidades mais antigas do mundo ainda em atividade, testemunho do valor histórico da educação em Bagdá/ Reprodução Facebook/الجامعة المستنصرية Al Mustansiriyah University
Criada no século XIII, a Universidade Mustansiriya é uma das universidades mais antigas do mundo ainda em atividade, testemunho do valor histórico da educação em Bagdá/ Reprodução Facebook/الجامعة المستنصرية Al Mustansiriyah University

A capital do mundo islâmico

O Califado Abássida sucedeu os Omíadas e transferiu a capital do império de Damasco, na Síria, para a recém-fundada Bagdá, às margens do rio Tigre.

Continua depois da publicidade

A mudança foi estratégica: a nova localização aproximava o governo das antigas rotas comerciais da Pérsia e da Mesopotâmia, fortalecendo o império tanto economicamente quanto culturalmente.

Bagdá tornou-se um mosaico multicultural, onde árabes, persas, turcos, indianos, gregos e judeus conviviam e trocavam ideias. A tolerância religiosa e a valorização do saber tornaram-se marcas da administração abássida. Era comum que cientistas cristãos, judeus e muçulmanos trabalhassem lado a lado nas mesmas instituições.

A religião é algo que une diferentes saberes e culturas. Conheça o bombom mais luxuoso do planeta, cuja história é marcada pela devoção a Nossa Senhora.

Continua depois da publicidade

O fim da era de ouro

O esplendor da cidade terminou de forma trágica. Em 1258, o exército mongol liderado por Hulagu Khan, neto de Gêngis Khan, cercou e conquistou Bagdá. Após semanas de resistência, a cidade foi devastada.

Relatos de cronistas árabes e persas descrevem que o rio Tigre escureceu pela tinta dos livros jogados na água e pelo sangue dos mortos. Estima-se que centenas de milhares de pessoas tenham sido assassinadas e que séculos de conhecimento acumulado tenham se perdido para sempre.

Com a execução do califa Al-Musta'sim, o Califado Abássida chegou ao fim, encerrando uma era de mais de 500 anos de esplendor cultural e científico.

Continua depois da publicidade

A guerra moderna e o novo apagamento

Mais de sete séculos depois, em 2003, Bagdá foi novamente arrasada durante a invasão do Iraque pelos Estados Unidos. A cidade sofreu intensos bombardeios e viu seu patrimônio cultural ser dilapidado.

A Biblioteca Nacional do Iraque e o Museu Nacional de Bagdá foram saqueados e incendiados. Manuscritos abássidas, tábuas cuneiformes mesopotâmicas e artefatos de mais de 4 mil anos desapareceram. A UNESCO classificou o episódio como uma das maiores perdas culturais da história moderna.

Falando em artefatos saqueados, países têm pedido o retorno de peças históricas. O Egito, por exemplo, voltou a exigir do Reino Unido a devolução da Pedra de Roseta, após a inauguração de um novo museu.

Continua depois da publicidade

Apesar da tragédia, nos últimos anos o país vem promovendo projetos de restauração de acervos e digitalização de manuscritos antigos, com apoio de universidades estrangeiras e de entidades internacionais.

O viajante, Luca Bassani, mostra Bagdá após 20 anos da invasão americana: 

A Bagdá que resiste

Atualmente, Bagdá segue como um importante centro acadêmico e cultural. A Universidade de Bagdá, fundada em 1957, é uma das maiores do Oriente Médio e mantém programas voltados à preservação do patrimônio histórico. A antiga Universidade Mustansiriya, criada no século XIII, ainda funciona, sendo considerada uma das mais antigas instituições de ensino do mundo.

Continua depois da publicidade

O governo iraquiano, em parceria com a UNESCO, investe na revitalização de áreas históricas e na revalorização da identidade cultural da cidade. Projetos recentes buscam reconstruir a Casa da Sabedoria em formato moderno, como um centro de pesquisa e intercâmbio científico internacional.

Bagdá continua sendo um símbolo de resistência do conhecimento diante da guerra. Sua história lembra que, mesmo quando livros são queimados e cidades arrasadas, as ideias sobrevivem — e o saber sempre encontra caminhos para renascer.

TAGS :

Mais Sugestões

Conteúdos Recomendados

©2025 Diário do Litoral. Todos os Direitos Reservados.

Software