Após 130 anos soterrado por canais e fazendas, o antigo lago Tulare voltou a emergir na Califórnia, como um gigante esquecido que se recusa a desaparecer / Reprodução Youtube/Los Angeles Times
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O lago Tulare, localizado no Vale de San Joaquin, na Califórnia, já figurou entre os maiores corpos de água doce dos Estados Unidos. No fim do século XIX, sua presença moldava a paisagem, a economia e a vida de comunidades inteiras.
Mas, há cerca de 130 anos, o lago desapareceu quase por completo, resultado direto de políticas de colonização e da drenagem sistemática de suas águas para transformar áreas alagadas em terras agrícolas.
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Em 2023, porém, o que parecia parte definitiva do passado voltou a ocupar o centro do debate ambiental norte-americano: o Tulare Lake ressurgiu de forma inesperada, impulsionado por um inverno excepcionalmente rigoroso e por chuvas intensas na primavera.
O retorno do lago trouxe impactos profundos, positivos para o meio ambiente e para povos indígenas, mas devastadores para agricultores e trabalhadores rurais da região.
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No final do século XIX, o lago Tulare se estendia por mais de 160 quilômetros de comprimento e cerca de 48 quilômetros de largura, sendo considerado “o maior corpo de água doce a oeste do rio Mississippi”, segundo a pesquisadora Vivian Underhill, da Universidade Northeastern, em um comunicado a imprensa.
Havia tanta água que embarcações a vapor transportavam suprimentos agrícolas de Bakersfield até Fresno e, depois, até San Francisco, percorrendo quase 480 quilômetros.
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Conhecido como “Pa’ashi” pelo povo indígena Tachi Yokut, o lago era alimentado principalmente pelo derretimento da neve da Sierra Nevada, em uma região onde a chuva é escassa. Fresno, por exemplo, recebe em média pouco mais de 250 milímetros de precipitação por ano, em alguns períodos, menos de 75 milímetros.
A partir da segunda metade do século XIX, no entanto, o lago começou a desaparecer. O processo fez parte do que o estado da Califórnia chamou de “reclamação”: políticas que incentivavam a drenagem de áreas alagadas ou a irrigação de terras áridas para criar áreas agrícolas.
Quem realizava esse trabalho recebia a posse da terra, o que estimulou a ocupação de territórios historicamente indígenas. Por volta de 1890, o lago havia praticamente sumido, substituído por uma extensa rede de canais de irrigação que ainda hoje corta o vale.
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Mais de um século depois, eventos climáticos extremos mudaram temporariamente esse cenário. O acúmulo recorde de neve no inverno, seguido por chuvas intensas na primavera de 2023, fez com que grandes volumes de água voltassem a escorrer para a antiga depressão onde o lago existia.
O canal "Great Timelapser" mostrou como foi o processo de reabastecimento do lago:
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O impacto foi imediato. Espécies de aves como pelicanos, gaviões e aves aquáticas reapareceram, assim como peixes e anfíbios trazidos pelas enchentes. Segundo Underhill, membros da tribo Tachi Yokuts relataram até o retorno de corujas-buraqueiras, espécie considerada vulnerável pelas autoridades ambientais dos EUA.
Para os povos indígenas, o ressurgimento teve um significado que vai além do ambiental. “O retorno do lago tem sido uma experiência incrivelmente poderosa e espiritual”, afirmou a pesquisadora. Cerimônias tradicionais voltaram a ser realizadas às margens da água, e práticas de caça e pesca foram retomadas após décadas de interrupção.
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Se, por um lado, o lago trouxe vida de volta ao ecossistema, por outro causou prejuízos severos à economia agrícola local. Inundações atingiram plantações, propriedades rurais e comunidades inteiras. Muitos trabalhadores agrícolas perderam suas casas e meios de subsistência.
Como resposta, autoridades e proprietários de terras iniciaram esforços para drenar novamente o lago. Menos de um ano após seu ressurgimento, em março de 2024, Dani Anguiano, uma repórter do The Guardian, encontrou apenas lama espessa e brotos de grama no local.
Segundo o condado de Kings, o lago havia encolhido para cerca de 1.060 hectares, com previsão de “desaparecimento iminente”, salvo novos episódios de derretimento intenso da neve.
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Apesar do recuo recente, o Tulare Lake segue no centro de um debate mais amplo sobre clima, uso da terra e justiça ambiental. Dados e análises apontam que o lago não ressurgiu apenas em 2023: fenômenos semelhantes ocorreram nos anos 1930, 1960 e 1980, sempre associados a períodos de chuvas e neve acima da média.
Com as mudanças climáticas, especialistas alertam que eventos extremos tendem a se tornar mais frequentes. “Inundações dessa magnitude ou maiores vão ocorrer com cada vez mais regularidade”, afirma Underhill. Para ela, insistir em eliminar o lago pode se tornar economicamente e ambientalmente inviável a longo prazo.
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Nesse contexto, começaram a surgir propostas para uma restauração parcial do Tulare Lake. Lideranças indígenas, ambientalistas e organizações comunitárias discutem a possibilidade de transformar parte da área em zonas úmidas permanentes, capazes de absorver cheias, reduzir riscos de inundação e recuperar habitats naturais. O projeto ainda enfrenta resistência de setores agrícolas e exigiria grandes investimentos e negociações sobre uso da água e da terra.
“O que chamamos de enchente, na verdade, é um lago retornando”, resume Underhill. Em uma paisagem que historicamente sempre foi marcada por lagos e áreas alagadas, a agricultura irrigada intensiva pode ter sido apenas um breve capítulo. O futuro do Tulare Lake, agora, depende de decisões que equilibram memória histórica, justiça ambiental, economia e adaptação às mudanças climáticas.