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Estudo revelador mostra o que acontece com uma criança que é vítima de racismo

Um relatório de Harvard mostra como a vivência do preconceito afeta o desenvolvimento e bem-estar infantil

Agência Diário

Publicado em 09/08/2025 às 19:30

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Estudos revelam os impactos silenciosos do racismo na mente e corpo das crianças / Foto: Reprodução/Freepik

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O racismo, vivenciado diariamente, seja através de preconceito direto ou ao testemunhar violências, deixa marcas muitas vezes "invisíveis", mas com efeitos duradouros e severos na saúde, no corpo e no cérebro das crianças.

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O Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard compilou uma série de estudos que documentam como a experiência cotidiana do racismo estrutural, em suas manifestações mais explícitas ou sutis, além do acesso desigual a serviços públicos, impacta "o aprendizado, o comportamento, a saúde física e mental" infantil.

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Esses impactos resultam, a longo prazo, em custos bilionários adicionais para a saúde e perpetuam as disparidades raciais, dificultando que uma grande parte da população alcance seu pleno potencial humano e capacidade produtiva.

Embora os estudos sejam originários dos EUA, a realidade brasileira, com seu histórico de escravidão e desigualdade, permite traçar paralelos claros entre os dois cenários.

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No Brasil, 53% da população se declara negra, enquanto nos EUA, negros representam 13% da população, evidenciando a relevância do tema em ambos os contextos. Saiba mais no vídeo abaixo, do canal Minutos Psíquicos: 

Corpo em alerta: o estresse tóxico

O racismo e a violência enfrentada dentro das comunidades, especialmente na ausência de apoio adequado, são classificados por Harvard como "experiências adversas na infância".

Viver constantemente sob o peso dessas experiências mantém o cérebro das crianças em um estado de alerta contínuo, desencadeando o que é chamado de "estresse tóxico".

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Pesquisas científicas de anos demonstram que, quando os sistemas de estresse das crianças são ativados em níveis elevados por longos períodos, ocorre um desgaste significativo em seus cérebros em desenvolvimento e em outros sistemas biológicos.

Na prática, isso significa que áreas do cérebro responsáveis pela resposta ao medo, ansiedade e reações impulsivas podem produzir um excesso de conexões neurais. Ao mesmo tempo, áreas cerebrais dedicadas à racionalização, ao planejamento e ao controle do comportamento podem gerar menos conexões.

Consequentemente, isso pode ter um efeito de longo prazo no aprendizado, no comportamento e na saúde física e mental das crianças.

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Um número crescente de evidências biológicas e sociais conecta o conceito de desgaste cerebral ao racismo, sugerindo que lidar constantemente com o racismo sistêmico e a discriminação cotidiana é um ativador potente da resposta ao estresse.

O documento de Harvard conclui que, "embora possam ser invisíveis para quem não passa por isso, não há dúvidas de que o racismo sistêmico e a discriminação interpessoal podem levar à ativação crônica do estresse, impondo adversidades significativas nas famílias que cuidam de crianças pequenas".

Esta psicóloga de Harvard ensina como conversar com uma criança a torna melhor.

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Mais doenças crônicas ao longo da vida

A exposição ao estresse tóxico é um dos fatores que ajudam a explicar as diferenças raciais na incidência de doenças crônicas. As evidências são vastas: "Pessoas negras, indígenas e de outras raças nos EUA têm, em média, mais problemas crônicos de saúde e vidas mais curtas do que as pessoas brancas, em todos os níveis de renda".

No Brasil, dados apontam para uma situação semelhante. Historicamente, homens e mulheres negros apresentam maior incidência de diabetes (9% mais prevalente em negros do que em brancos; 50% mais prevalente em mulheres negras do que em brancas) e pressão alta, segundo o Ministério da Saúde.

Os números mais chocantes, entretanto, são os da violência armada. O Atlas da Violência indica que negros foram 75,7% das vítimas de homicídio no Brasil em 2018, com uma taxa de homicídios de 37,8 para cada 100 mil habitantes negros, em contraste com 13,9 para não negros.

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Há também uma incidência possivelmente maior de problemas de saúde mental: em 2016, de cada dez suicídios em adolescentes, seis foram de jovens negros ou pardos e quatro de brancos, conforme pesquisa do Ministério da Saúde.

A psicóloga Cristiane Ribeiro ressalta, à BBC, que "o adoecimento (pela vivência do racismo) é constante, e vemos nos dados escancarados, como os da violência, mas também na depressão, no adoecimento psíquico e nos altos números de suicídio".

Ela explica que a violência é tão marcante entre pessoas negras porque "aprendemos que nosso semelhante é o pior possível e o quanto mais longe estivermos dele, melhor".

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Crianças negras, por exemplo, recebem menos afeto de professores na educação infantil e frequentemente ouvem frases como "esse menino não aprende mesmo, é burro" ou "nasceu pra ser bandido". Embora muitos consigam superar essa narrativa, outros têm suas vidas marcadas por ela, em "trajetórias sentenciadas".

Estudo da Unesp aponta relação entre sedentarismo infantil e inatividade dos pais.

Disparidades na saúde e educação

Os problemas mencionados são amplificados pelo menor acesso a serviços públicos essenciais. O documento do Centro de Desenvolvimento Infantil destaca que "pessoas de cor recebem tratamento desigual quando interagem em sistemas como o de saúde e educação, além de terem menos acesso a educação e serviços de saúde de alta qualidade, a oportunidades econômicas e a caminhos para o acúmulo de riqueza".

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Isso reflete "formas como o legado do racismo estrutural nos EUA desproporcionalmente enfraquece a saúde e o desenvolvimento de crianças de cor".

No Brasil, os números revelam um quadro similar. De acordo com o Ministério da Saúde, 67% do público do SUS (Sistema Único de Saúde) é negro, porém, a população negra realiza proporcionalmente menos consultas médicas e atendimentos de pré-natal. Ademais, entre os 10% de pessoas com menor renda no país, 75% são pretas ou pardas.

As disparidades persistem na educação: crianças negras de 0 a 3 anos têm um percentual menor de matrículas em creches. No ensino médio, 53,9% dos jovens negros concluíram essa etapa até os 19 anos, uma diferença de 20 pontos percentuais em relação aos jovens brancos, conforme dados de 2018 do movimento Todos Pela Educação.

Cuidadores afetados e o 'racismo indireto'

Os efeitos do estresse não se restringem apenas às crianças, mas se estendem também aos pais e responsáveis, gerando um efeito bumerangue que afeta as crianças indiretamente.

Múltiplos estudos documentaram como o estresse da discriminação diária em pais e cuidadores, incluindo a associação a estereótipos negativos, tem "efeitos nocivos no comportamento desses adultos e em sua saúde mental".

Um estudo de 2018, que embasa essa conclusão, abordou a "exposição indireta ao racismo": mesmo quando as crianças não são alvo direto de ofensas ou violência racista, podem ser traumatizadas ao testemunhar ou ouvir sobre eventos que afetaram pessoas próximas.

Para crianças de minorias raciais, a "exposição frequente ao racismo indireto pode forçá-las a dar sentido cognitivamente a um mundo que sistematicamente as desvaloriza e marginaliza".

Esse tipo de racismo afeta tanto os cuidadores, que podem ter a autoestima mais fragilizada, quanto as crianças, resultando em mais partos prematuros, menor peso ao nascer e maior chance de adoecer ou desenvolver depressão ao longo da vida.

A psicóloga Cristiane Ribeiro explica que na infância, a capacidade de acreditar no próprio potencial para viver no mundo é construída, e para a população negra, essa construção é negativamente afetada por estereótipos racistas, sejam eles sobre características físicas ou sociais.

Segundo Ribeiro, "a única representação que a gente tem no livro didático de história é de uma pessoa (escravizada) acorrentada, em uma situação de extrema vulnerabilidade e que está ali porque 'não se esforçou para não estar'".

Atos "sutis", como ser seguido por seguranças em lojas ou receber um atendimento inferior, podem ser devastadores para a autoestima, mesmo que passem despercebidos para observadores brancos.

A psicóloga argumenta que "isso que a gente costuma chamar de sutileza do racismo não tem nada de sutil na minha perspectiva", e que o "olhar (preconceituoso)" pode "te destroçar", questionando o direito à fragilidade da mulher negra.

Como quebrar o ciclo do racismo

Os avanços na ciência deixam cada vez mais claro como a adversidade intensa na vida de crianças pequenas pode impactar o desenvolvimento do cérebro e outros sistemas biológicos, enfraquecendo suas oportunidades de alcançar o pleno potencial.

No entanto, é possível romper esse ciclo, embora as formas de combatê-lo sejam complexas e multifacetadas.

O Centro de Desenvolvimento Infantil de Harvard defende que são necessárias "novas estratégias para lidar com essas desigualdades que sistematicamente ameaçam a saúde e o bem-estar das crianças pequenas de cor e os adultos que cuidam delas".

Isso inclui "buscar ativamente e reduzir os preconceitos em nós e nas políticas socioeconômicas, por meio de iniciativas como contratações justas, oferta de crédito, programas de habitação, treinamento antipreconceito e iniciativas de policiamento comunitário".

Para Cristiane Ribeiro, passos cruciais nessa direção envolvem maior representatividade negra e mais discussões sobre o tema dentro das escolas.

Ela enfatiza a importância de extinguir a ideia de "lápis cor de pele" e de professoras que tratem os cabelos crespos com tanto afeto quanto os lisos, pois isso pode "mudar o mundo daquela criança" e construir uma "defesa para que ela responda quando seu cabelo for chamado de duro, de feio".

Esse "olhar afetivo nessa história quebra o ciclo", permitindo que a criança negra se olhe no espelho e veja beleza.

Harvard também aponta o afeto e a construção de redes de apoio como formas de aliviar o peso do estresse tóxico e construir resiliência em crianças e famílias.

A ciência não pode resolver esses desafios sozinha, mas o pensamento científico, combinado com o conhecimento sobre a mudança de sistemas enraizados e as experiências vividas pelas famílias, pode ser um "poderoso catalisador de estratégias eficientes"

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