Alguns desses sambaquis contêm sepulturas de centenas ou até milhares de indivíduos / Ana Paula Cittadin/Divulgação/Gov.br
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Há sete milênios, a costa litorânea do que um dia seria o Brasil foi habitada por sambaquieiros, povo responsável por construir os monumentos de até 40 metros de altura feitos a partir de conchas, ossos, areia e terra, chamados sambaquis. Hoje, é possível inclusive encontrar restos humanos nesses locais.
A história desse povo possui diversos mistérios. Não se sabe, por exemplo, de onde eles vieram, por que sumiram ou se foram substituídos por outros povos indígenas que habitavam o litoral quando os navios portugueses chegaram em 1500.
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Porém, um estudo publicado recentemente no periódico Nature Ecology & Evolution pode nos tirar algumas dessas dúvidas.
Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), juntamente com equipes de outras instituições nacionais e internacionais, fez o sequenciamento genético dos fósseis de 34 indivíduos que viveram em quatro diferentes regiões do país num passado distante.
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Um deles, inclusive, possui 10 mil anos de idade.
Um dos autores do trabalho e professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, o arqueólogo André Strauss informa que os sambaquis são grandes montes de conchas que estão dispersos pela costa brasileira, especialmente no Sul e no Sudeste.
Alguns desses sítios arqueológicos atingem proporções impressionantes, com alturas variando entre 30 e 40 metros, relata o pesquisador.
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Essas estruturas foram erguidas por civilizações que habitaram a costa atlântica entre 8 mil e 2 mil anos atrás.
Supõe-se que a sobrevivência dessas comunidades estava sustentada por uma economia diversificada, que combinava a pesca, a coleta de frutos do mar e o cultivo de plantas.
É possível que a caça de animais terrestres e práticas de horticultura também fizessem parte do cotidiano dessas populações.
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Os sambaquis representam a acumulação deliberada e prolongada de conchas, restos de peixes, vegetais, artefatos, vestígios de fogueiras e sedimentos locais.
Serviam como demarcações territoriais, habitações, cemitérios e/ou espaços cerimoniais, resume um estudo publicado na revista Nature.
Alguns desses sambaquis contêm sepulturas de centenas ou até milhares de indivíduos. Um exemplo é o sambaqui Capelinha, localizado às margens de um rio no Vale do Ribeira, em São Paulo, com uma idade de 10,4 mil anos.
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Outros monumentos semelhantes, mais recentes, possuem cerca de 1,3 mil anos.
Para a pesquisa, 34 amostras humanas foram classificadas em quatro grandes grupos de acordo com suas regiões geográficas: Baixa Amazônia (próxima à Ilha de Marajó, no Pará), Nordeste, região de Lagoa Santa (em Minas Gerais) e Costa Atlântica Sudeste/Sul, onde estão concentrados a maioria dos sambaquis.
Lagoa Santa, em particular, é conhecida por ter abrigado Luzia, o fóssil humano mais antigo já encontrado na América do Sul, com cerca de 13 mil anos.
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Ressalta-se que parte dos 34 exemplares analisados estava associada aos sambaquis, enquanto outros pertenciam a períodos mais antigos ou mais recentes, permitindo comparações genéticas que ajudaram a desvendar as conexões entre diferentes povos ao longo da história.
A análise genética realizada nos sambaquieiros revelou uma diversidade surpreendente entre os grupos.
Enquanto a arqueologia mostrava similaridades, os dados genéticos destacaram diferenças significativas entre os povos do Sudeste e do Sul da costa brasileira.
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Esses grupos descendem dos mesmos ancestrais que cruzaram a Beríngia há 16 mil anos e deram origem a todas as populações indígenas.
Uma descoberta marcante foi a continuidade de linhagens relacionadas ao povo de Luzia, de Lagoa Santa, que persistiram até cerca de 2 mil anos atrás.
Esse achado contradiz a ideia de que tais povos teriam desaparecido completamente há 9 mil anos.
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Além disso, ficou claro que esses grupos interagiam com comunidades do interior, mostrando que não estavam isolados do restante do continente.
Os resultados indicaram também que essas populações, antes vistas como densas demograficamente, eram menores em número.
A redução populacional notada há 2 ou 3 mil anos levanta questões sobre as causas desse fenômeno.
A chegada dos europeus e a consequente redução de 98% da população local após 1500 dificultam ainda mais o entendimento do passado remoto e a preservação de variantes genéticas originais.
O professor reafirma que é preciso entender melhor a origem e o fim dos sambaquis.
Não se sabe exatamente o motivo do desaparecimento em massa ocorrido há dois mil anos.
O povo, que até então podiam ser considerados reis da costa com suas enormes construções, desapareceu de repente, deixando inúmeras questões aos pesquisadores.
Os sambaquis, mesmo com a redução das expectativas sobre a densidade populacional, continuam a ser considerados o maior fenômeno demográfico da América do Sul pré-colonial, ficando atrás somente das civilizações andinas.
O arqueólogo destaca que o estudo recentemente divulgado traz algumas evidências importantes.
Ele afirma, ainda, que os achados indicam que, por volta de 2 mil anos atrás, começou a aparecer nos sambaquis uma marca genética associada aos povos ancestrais Jê, que viviam no interior do Sul e se moveram para o litoral.
É provável que isso tenha influenciado a vida dos sambaquieiros..
Nessa época, os sambaquis começaram a incorporar cerâmicas em suas construções, uma inovação trazida por esses grupos do interior, que até então usavam apenas conchas e ossos.
Essa transição sugere não uma substituição total dos sambaquieiros, mas uma adaptação gradual, com a assimilação de novas práticas e tecnologias.
Para a geneticista Tábita Hünemeier, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, combinar estudos genéticos e arqueológicos é essencial para entender esse complexo panorama histórico.
Ela afirma que ainda há muitas lacunas e questões sem resposta, mas aos poucos é possível reconstruir a história da ocupação humana na América do Sul.