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Cultura

Uma foto e muitas visões: o menino e o mar

O registro do fotógrafo da Agência Reuters, Lucas Landau, acendeu o debate sobre o papel da fotografia e os limites entre arte e direito de imagem

Rafaella Martinez

Publicado em 08/01/2018 às 12:25

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O registro do fotógrafo da Agência Reuters, Lucas Landau, acendeu o debate sobre o papel da fotografia e os limites entre arte e direito de imagem / Reprodução Facebook/Lucas Landau

Um menino, o mar de Copacabana durante o réveillon e milhares de interpretações e polêmicas. Desde as primeiras horas de 2018 o registro do fotógrafo da Agência Reuters, Lucas Landau, acendeu o debate sobre o papel da fotografia e os limites entre arte e direito de imagem. Há quem tenha visto na foto apenas o encantamento da criança que contempla de dentro do mar gelado a queima de fogos na praia. Outras pessoas atribuíram à imagem os contrastes sociais do Brasil e há grupos que questionam até mesmo o racismo velado de quem enxerga na foto do menino negro o símbolo da pobreza.

O filósofo Vilém Flusser destaca em sua obra que vivemos a era das imagens. Cada vez menos se lê textos e cada vez mais se interpreta o mundo pelas imagens. E é aí que pode morar o equívoco.

“A imagem não é a realidade, antes de tudo porque a realidade tem três dimensões e a imagem suprime uma delas. A supressão da dimensão de profundidade distorce, adultera, perverte, ilude. Depois, porque a imagem é um recorte da realidade feita sob a ótica de quem a produziu. Portanto, é carregada de subjetividades, abstrações, parcialidades e intenções”, destacou o fotógrafo Cadu de Castro.

Para Adilson Felix, que já atuou por anos em diversas agências de fotojornalismo do Brasil e do Mundo, o papel da fotografia é lançar a discussão e criar o debate. “Falo para os meus alunos que quando eles vão captar uma imagem eles precisam ter em mente o que eles querem dizer, o que querem gritar com ela. Você fotografa com toda a bagagem de vida que você carrega e a sua imagem é também o espelho da sociedade: as pessoas olharão para ela sob a ótica do contexto que cada um vive. Não sei dizer no que o fotógrafo pensou ao clicar o menino, mas com certeza existiu uma ideia, que pode não ser a mesma de quem irá contemplá-la”, justifica.

Direito da imagem

Até que ponto o fotógrafo pode divulgar e comercializar a imagem de uma pessoa? Para Adilson, o fotojornalismo permite o registro em espaços públicos. “Penso que o ideal seria achar o menino antes de comercializar a imagem para fins pessoais. Mas, enquanto registro do cotidiano, a praia é um espaço público”.

Opinião semelhante é a do também fotógrafo Tom Leal, um dos idealizadores do TUmobgrafia – projeto dedicado integralmente à fotografia mobile de cenas do cotidiano. Para ele, o debate sobre direito de imagem é amplo e abre margem para as mais diversas interpretações. “Fotografo muito na rua e na maior parte das vezes são cenas rápidas. Em raros momentos consigo conversar com quem fotografo. Quando trabalhamos com instantes nos espaços públicos isso é difícil. O momento congelado dá subjetividade para diversas interpretações das fotos que faço”, afirma.

Para a advogada Maria Carollyna Gagliardo é preciso ficar atento aos direitos e deveres existentes na Constituição Federal, uma vez que a utilização da imagem de forma indevida pode gerar indenização caso o resultado for prejudicial à reputação ou se trouxer prejuízos materiais ao detentor do direito.

“Na situação em questão, o pré-conceito ou pré-julgamento partem de olhares que encaram a criança já estereotipada em criança negra desprovida ou periférica, sem ao mesmo diálogo ou contextualização. A meu ver, para tal finalidade não há indagação. A foto foi feita em um contexto público, em uma festa pública. É um contemplamento e não uma criança em uma situação de sofrimento e vulnerabilidade”, destaca.

Papel da fotografia

Em 1993 o fotógrafo sul-africano Kevin Carter clicou a imagem de um menino subnutrido e em posição fetal, com um abutre nas proximidades. A foto foi feita no Sudão, África. O registro rendeu ao fotógrafo o prestigiado prêmio Pulitzer. Pela imagem, o “mundo” viu, a morte e a fome, “a morte pela fome”, com descreve Cadu.

“A opinião pública apressou-se em julgar e condenar Kevin Carter, considerando que o fotógrafo poderia, e deveria, ter feito alguma coisa para salvar a criança. No entanto, a imagem foi feita num centro de alimentação da ONU, instalado no Sudão durante a guerra civil. Kong Nyong, onde a criança era atendida. Carter foi muito criticado por não ajudar o menino. O jornal St. Petersburg Times, da Flórida, disse que o homem ajustando suas lentes para capturar o enquadramento exato daquele sofrimento poderia muito bem ser um predador, um outro urubu na cena”, pondera.

No mesmo ano em que ganhou o Pulitzer, Kevin, que fazia parte de um grupo de fotógrafos que denunciava por intermédio de imagens a política do apartheid na África do Sul, o Bang Bang Club, sucumbiu às críticas e cometeu suicídio. Kong Nyong, o menino sudanês retratado por Kevin venceu a desnutrição e chegou à vida adulta. Morreu anos depois vítima de uma febre.

Adilson Felix acredita que a linha é tênue nesses casos. “Recuperei recentemente alguns negativos de fotos que fiz no Sudão, perto da região onde foi feito o registro da criança e do abutre. Em uma delas, uma criança estava morrendo. Quando fiz aquela foto, a minha intenção não era expor a criança e sim chamar atenção para um problema que muitos desconhecem. Se tivemos receios na hora de fotografar, não vamos registrar mais nada”, enfatiza.

Cadu de Castro é enfático em relação a polêmica da foto. “Se há verdades na fotografia, elas são diversa, múltiplas. Se há uma verdade na fotografia é que ela é ilusão. Já para Adilson, a foto é poesia. “Em minha opinião o mundo fotográfico começou muito bem 2018, com uma imagem esteticamente perfeita, com a luz adequada e que captou o momento preciso”, destaca.

Com a palavra, Lucas Landau

Procurado pela reportagem, o autor do click que rodou o Brasil e o mundo destacou que só irá falar sobre o assunto quando encontrar o menino e os responsáveis. “A fotografia ganhou vida própria e tomou uma proporção gigantesca. Gostaria apenas de reforçar que a foto do menino não foi comercializada por mim”.

Por meio das redes sociais, Landau havia dito que estava a trabalho fotografando as pessoas assistindo aos fogos quando encontrou o menino na água gelada e fez o registro. “Essa fotografia abre margem para várias interpretações; todas legítimas, a meu ver. Existe uma verdade, mas nem eu sei qual é”, finaliza.

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