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Cotidiano

Vítimas de incêndio na boate Kiss são lembradas em vigília e protesto

A programação da primeira metade do dia reuniu familiares e amigos das vítimas, sobreviventes e pessoas solidárias a quem sofreu perdas na tragédia

Pedro Henrique Fonseca

Publicado em 27/01/2014 às 19:42

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O primeiro ano do incêndio da boate Kiss foi lembrado com homenagens aos 242 mortos, manifestações de saudade, protestos e pressão sobre o Ministério Público para que responsabilize mais pessoas, nesta segunda-feira, 27, em Santa Maria, cidade de 246 mil habitantes localizada na região central do Rio Grande do Sul.

A programação da primeira metade do dia reuniu familiares e amigos das vítimas, sobreviventes e pessoas solidárias a quem sofreu perdas na tragédia. Apesar de ser luto oficial, a cidade não parou e viveu um dia de movimento normal. Algumas lojas exibiram laços brancos e flores em suas vitrinas para marcar a data.

A primeira e mais dolorida homenagem foi uma vigília da zero hora às oito horas, diante do prédio no qual funcionava a boate, na rua dos Andradas, para lembrar a madrugada em que a maioria das vítimas morreu asfixiada pelo cianeto liberada pela queima da espuma de revestimento da casa noturna.

O asfalto da rua foi pintado com a silhueta de 242 corpos em movimento, como se estivessem dançando. Sobre um coração também desenhado no chão familiares acenderam 242 velas, que ficaram no local até derreter e apagar, em uma representação das vidas que se extinguiram. O silêncio entrecortado por soluços foi quebrado algumas vezes por gritos em coro de "justiça", orações, e pela contagem de números, do um ao 242, feita em uníssono durante cinco minutos. Pouco depois das 3 horas, coincidindo com o momento em que o incêndio começou, soaram sirenes e o grito "acorda, Santa Maria", a todo o volume, no equipamento de som.

Os estudantes Werner Vai, 24 anos, e Júlia Hoppe, 21 anos, que não perderam pessoas próximas na tragédia, passaram boa parte da vigília em silêncio, por perto de famílias que nem conheciam. "Eu sinto que elas precisam de solidariedade e justiça", comentou Júlia.

Sobreviventes do incêndio também estavam entre as cerca de 500 pessoas que passaram pelo local durante a madrugada. "Estou aqui para me solidarizar e também agradecer por estar vivo, porque fui salvo por um milagre e nasci de novo", revelou o estudante Rodrigo Rizzi, 24 anos. Ele lembra que foi puxado de dentro da boate para a rua pelas mãos de desconhecidos e que, depois de retomar o fôlego, ajudou a puxar outras pessoas a tentar abrir passagens dando marretadas na parede, assim como outros jovens fizeram.

Para o comerciante Ildo Toniollo, 59 anos, voltar ao palco da tragédia não chegou a ser novidade. "Eu venho seguidamente aqui", contou, revelando um dos movimentos que faz para tentar sobreviver sem a filha Leandra, de 23 anos, que perdeu na tragédia. "Esse lugar deve representar que devemos manter a luta pela justiça".

Mais arredia, a cabeleireira Claudia Flores participou pela primeira vez de um ato coletivo no qual chorou de saudade da filha Andressa, de 24 anos, que trabalhava na própria boate, como atendente e preparando drinques. "É dolorido, mas eu tento lidar com essa falta me apegando a Deus", afirmou.

O consultor de Tecnologia da Informação Paulo Carvalho, 63 anos, morador de São Paulo, fez questão de ir a Santa Maria reverenciar a memória do filho Rafael, 32 anos, que estava na cidade gaúcha visitando um amigo e tornou-se mais uma das vítimas da tragédia. Vinculado à Associação das Vítimas e Familiares das Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), ele participa ativamente das mobilizações e é mais uma das vozes que pedem justiça para o caso. "Não falo muito no meu filho, mas sinto ele aqui comigo", contou.

Empresário de Santa Maria, Flávio José da Silva, 52 anos, é um dos líderes do Movimento Do Luto à Luta, e reclama do descaso das autoridades locais, estaduais e federais e até dos movimentos de direitos humanos diante das famílias que estão sofrendo, da necessidade de condenar os culpados e de oferecer garantias de segurança para que incêndios como o da Kiss não se repitam.

"Não consigo pensar que minha filha morreu", revela, referindo-se à jovem Andrielli, que tinha 22 anos e comemorava o aniversário, que havia feito naquela semana, na boate, e estava aprovada para o curso de Desenho Industrial na Universidade Federal de Santa Maria. Na intimidade da sua casa, o empresário tenta conviver com a saudade conversando com a foto da filha em um banner. "Quase todas as noites eu me pego fazendo perguntas para ela e imaginando as respostas", revela, afirmando que não é o único dos pais que faz isso.

Caminhada pelas vítimas da Boate Kiss pediu justiça  (Foto: Agência Brasil)

As homenagens prosseguiram na manhã desta segunda-feira com atividades culturais e o plantio de uma árvore no campus da Universidade Federal de Santa Maria, que perdeu mais de cem alunos na tragédia. Para o início da noite estavam previstas manifestações como um minuto de silêncio seguido de toques de bumbo e leitura do nome de cada uma das vítimas, na Praça Saldanha Marinho, e shows musicais. As homenagens terminariam com um culto ecumênico, no mesmo local.

Protesto

Familiares e amigos das vítimas também foram às ruas protestar. Logo depois da vigília da madrugada, um grupo de 200 pessoas deixou a Rua dos Andradas, onde ficava a casa noturna, e caminhou por cerca de 20 quadras até a sede do Ministério Público do Rio Grande do Sul para pressionar os promotores a acusar mais envolvidos, especialmente funcionários públicos municipais e o prefeito Cezar Schirmer (PMDB). Diante das portas do pátio fechadas porque o expediente só começaria às 12 horas, o grupo colocou 242 balões brancos nas grades e sentou no asfalto da rua para batucar, gritar "justiça" e "chega do rolo, o MP tem fatia nesse bolo".

O inquérito policial que apurou o caso concluiu que, durante show pirotécnico da banda Gurizada Fandangueira, uma fagulha chegou ao revestimento do teto e queimou a espuma, liberando o cianeto que matou por asfixia a maioria das vítimas. A casa estava superlotada e a única porta não deu vazão à multidão que tentava fugir em pânico. Também foi detectada uma cadeia de falhas nos processos de licenciamento e fiscalização. O inquérito apontou responsabilidades de 28 pessoas e indiciou 16 por crimes como homicídio doloso com dolo eventual qualificado, homicídio culposo, fraude processual e falso testemunho.

Schirmer estava entre os nomes que apareciam como responsabilizados porque, segundo a polícia, havia indícios de prática de homicídio culposo por falhas cometidas na esfera municipal por secretários, fiscais e funcionários públicos. À época, o prefeito reagiu qualificando a acusação de "absurdo jurídico". Como era caso de foro privilegiado, o assunto foi levado à procuradoria de prefeitos do Ministério Público, que deu parecer, e ao Tribunal de Justiça, e foi arquivado por decisão unânime dos desembargadores.

Depois dos trâmites em cada área, hoje há três processos contra acusados de algum tipo de responsabilidade pelo desastre da Kiss A acusação mais grave, de homicídio doloso com dolo eventual, que pode levar à cadeia, é na área criminal, contra os empresários Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, sócios da boate, o músico Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor de palco Luciano Augusto Bonilha Leão, que irão a júri popular. Um bombeiro responde por fraude processual e um ex-sócio da Kiss e um contador por falso testemunho e serão julgados pelo juiz de primeiro grau. Na esfera cível, quatro bombeiros são acusados de improbidade administrativa. E na Justiça Militar três bombeiros respondem por inclusão de declaração falsa em documento público.

Como entendem que os funcionários públicos apontados pela Polícia e não denunciados pelo Ministério Público também deveriam ser levados à Justiça, os familiares vêm pressionando os promotores a incluir mais réus nos processos. Alegam que foram descobertos fatos novos, como a troca do número do prédio da Kiss que teria sido feita para facilitar o licenciamento inicial e o funcionamento da casa pelos quatro anos de sua existência, entre 2009 e 2013, sem os cinco alvarás e licenças exigidos simultaneamente pela legislação. A boate chegou a ter os documentos, mas nunca teve os cinco ao mesmo tempo.

O subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais Marcelo Dornelles disse que Schirmer não teve envolvimento com a colocação da espuma e com o show pirotécnico que originou a tragédia. Também admitiu que não há, na investigação policial, prova de que o prefeito tenha interferido de alguma maneira na concessão de alvarás ou na fiscalização. "Achamos a situação compreensível pelo momento emocional de todos, mas nós só podemos aplicar a lei", comentou, admitindo, no entanto, que se aparecer alguma prova nos inquéritos complementares que a polícia está fazendo, a instituição poderá mudar sua posição.

Schirmer também comentou a pressão em nota enviada à reportagem. "No Estado Democrático de Direito, não se faz justiça com injustiça. Será que é tão difícil aceitar que a prefeitura agiu adequadamente no cumprimento da legislação?", questionou.

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