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Cotidiano

Ela sofreu estupro coletivo, morou na rua e perdeu um filho atropelado: conheça a história de 'Andreia'

Andreia viveu na rua, na Fundação Casa e nos Centros de Detenção. Hoje em um lar ocupado na Praia Grande, ajuda mães de filhos presos em grades físicas ou mentais a redescobrirem o caminho de volta para casa.

Rafaella Martinez

Publicado em 20/11/2019 às 09:56

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Andreia é rapper, cabeleireira, defensora pública popular de reintegração de posses e mediadora de vagas em SUS e creche. / NAIR BUENO/DIÁRIO DO LITORAL

Há ladrilhos marrons na fachada e uma frondosa árvore no quintal da casa de muro baixo e portões permanentemente abertos no Balneário Maxland, em Praia Grande. Por eles passam, na maior parte das vezes, mulheres sem chão. Encontram no interior repleto de móveis simples, acolhimento, um par de ouvidos e mãos atenciosas de quem viveu na pele, dezenas de vezes, o sofrimento causado pela privação de liberdade. Idealizadora do 'Mães do Cárcere', Andrelina Amélia Ferreira, ou simplesmente Andreia, faz questão de lembrar que as grades não são somente as físicas, de uma penitenciária. "Essas mulheres querem amparo para qualquer contexto social que prenda a si mesmas ou seus filhos".

Rapper, cabeleireira, defensora pública popular de reintegração de posses e mediadora de vagas em SUS e creches. A mulher que hoje acolhe também vagou pelas esquinas da existência, experiência que trouxe a propriedade para falar, intervir e transformar. Nascida na Zona Sul de São Paulo, perdeu a mãe e o pai aos 15 anos. Enquanto o progenitor - foragido do Esquadrão da Morte - foi assassinado na casa onde morava, a mãe foi vitimada por um derrame pouco mais de um mês depois.

Vítima de um abuso cometido dentro de casa pouco tempo depois e de um estupro coletivo a caminho da escola, morou na rua, engravidou prematuramente, perdeu a guarda do filho, sofreu dois abortos, passou 16 vezes pela Fundação Casa por pequenos delitos e foi, quando maior, presa pelo mesmo crime. "Na infância eu roubava porque tinha fome e também vontade comer os doces que todas as crianças comiam. Quando maior, eu queria aquela calça para me esquentar e aquele sapato para poder andar pelas ruas, mas não tinha dinheiro", relembra.

Também conheceu o extinto Carandiru e foi uma das mulheres de detentos aflitas no fatídico 2 de outubro de 1992, data do massacre. "Meu marido estava no pavilhão oito e a chacina aconteceu no nove. Eu lembro de estar do lado do falecido repórter Gil Gomes na multidão daquele dia".

As visitas ao Carandiru eram frequentes e Andreia conta que um dia o ex-marido pediu para que ela levasse uma certa cola escolar para o presídio com o objetivo de fazer a hora passar com artesanato. "Ele só não me contou que tinha cocaína dentro dela. O resultado foi mais quatro meses de cadeia. Eu lembro que fui absolvida no dia de São Judas, padroeiro das causas impossíveis. Eu jurei que minha vida ia mudar depois daquele dia, mas não mudou".

Na última detenção, já em Mongaguá, afirma que tentou defender uma criança de abusos sexuais cometidos por um vizinho de idade avançada. "Lá dentro eu conheci uma mulher que pediu para que eu cuidasse das filhas dela quando saísse. Fui salva da cadeia por um anjo, um advogado que fazia trabalho social e que pegou meu caso. Eu gritava o nome da menina que era abusada e ninguém me ouvia. Ele conseguiu localizar e junto com a juíza foi atrás da história dessa criança, o que me garantiu a liberdade", conta.

Depois de se mudar para Praia Grande em busca de reescrever sua história, acabou descobrindo uma casa abandonada no Balneário Maxland, que serviu por anos como ponto de tráfico de drogas. Ocupou com os filhos de sangue e coração, onde até hoje se mantém com o ofício de trançadeira. Questionada sobre as passagens policiais, curiosamente lembra de uma passagem da infância.

"Quando meu pai morreu lembro de ir com a minha mãe no barraco dele e de pedir ou uma arma que ele guardava por lá ou um gravador de fitas que ele tinha. Minha mãe me entregou o gravador e acho que essa simbologia entre as duas coisas diz muito sobre o que eu sou hoje. Eu tinha dois mundos na minha frente e graças a Deus escolhi o certo", reflete. Hoje ela se considera uma ativista que entendeu que reivindicar seus direitos 'não é queimar pneu na rua e jogar pedra na viatura'.

Andreia gosta de falar. Gosta também de compor rimas de rap e posar para fotos deixando bem evidente seu colar longo com as iniciais M.F. "Quer dizer mães e filhos. Meu sobrenome são meus filhos", conta emocionada, lembrando da perda prematura do filho, aos 27 anos, vítima de um atropelamento a caminho do trabalho. "Ele veio para me ensinar a ser uma pessoa melhor. Hoje a dor da perda é saudade. Hoje sei que preciso concluir a minha história e também a história dele".

De acordo com Andreia, por mais clichê que soe a frase, só há uma força no mundo capaz de mudar uma pessoa: o amor. "Minha vida só mudou quando meus filhos nasceram. Só se faz grandes coisas quando se tem amor. Só se muda por amor. É um pequeno exemplo, mas que ilustra muito bem isso: só virei trançadeira porque meu filho achou equipamentos de salão abandonados na rua e trouxe para mim. Eles são melhores do que eu", relembra emocionada.

Moradora da periferia de Praia Grande, Andreia tem pulso firme para falar sobre temas polêmicos: não aceita a distinção entre pessoas por conta da cor da pele; não apoia as cotas e considera o preconceito um problema de quem o praticou. "A menina que morava na rua hoje divide espaço com os doutores na universidade. Eu não me vejo como 'a única negra aqui'. Eu me vejo como o pingo que faltava. Eu vou lutar para além das cotas, afinal, nosso sangue é vermelho", afirma.

Ela também rechaça o vício em drogas ilícitas como uma questão de segurança. "Hoje o jovem entra no crime para sustentar o vício. É um problema de saúde pública. A droga não está só na periferia: ela está lá com o ator bonitão da Globo também. Hoje o dependente é tratado como delinquente quando na verdade ele está doente e precisa de ajuda", afirma enfática.

O que recebe de um comércio local divide em dezenas de cestas básicas para a comunidade. Visita presídios femininos para resgatar a autoestima de mulheres e, nos masculinos, pleiteia a dignidade das famílias de encarcerados.

Para ela, nada no mundo tem mais força do que receber a visita dos jovens que abraça como filhos trazendo nas mãos uma Carteira de Trabalho preenchida. "Eu acho que é sinal de que eu não estou perdendo tempo dentro da comunidade e que estou conseguindo fazer o que o Estado muitas vezes não consegue. Conheci a dor e o sofrimento, mas também achei amor, companheirismo e oportunidades nas estradas por onde andei. E eu não paro. Eu estou sempre por aí...".

LIVRO

Essas e outras memórias de vida de Andreia serão publicadas num livro da editora Imaginário Coletivo. A fim de realizar esse sonho, ela lança hoje um crowdfunding (vaquinha digital) que seguirá até meados de dezembro pelo link: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/livro-manual-para-trancar-rumos.

Crédito: Nair Bueno/DL

Memórias de vida de Andreia serão publicadas num livro da editora Imaginário Coletivo, via crowdfunding.

Parte de familiares e amigos também foram entrevistados, em pesquisa desde janeiro do jornalista santista Lincoln Spada. Duas jovens respectivamente de São Vicente e Cubatão, a fotógrafa Linda Leão e a ilustradora Isabela Sessa, compõem a obra em formato de romance.

"Conheci a Andreia por meio de uma reportagem virtual, em 2013. Desde 2016, ela se sentia pronta para se eternizar em um livro, mas o acaso nos uniu de fato em janeiro deste ano, quando senti que devia corresponder com seu sonho. A rotina variava de palavras a curtos silêncios", relembra o jornalista.

"Quando o 3G beirava o seu lar, ouvíamos músicas de juventude, jornais antigos, até trechos de novela a fim de afinar suas lembranças. Andreia tem o dom de narrar. Choramos e rimos, e após as conversas, ambos passamos madrugadas em claro digerindo as cenas trançadas por ela", relembra.

Ao todo, foram mais de 100 horas de gravações e registros, geralmente em visitas semanais que o co-autor fez na casa de Andreia."Nessa terapia informal de sofá, rimos muito e choramos muito. Sinto que ela, de fato, tornou-se também minha mãe", finaliza.

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