O caldo de cana é um dos símbolos do Centro de Santos / Matheus Tagé/DL
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Por Daniela Origuela
O ônibus circular se aproxima do Valongo. O cheiro de café em processo de torrefação aguça a memória. O coletivo sobe o elevado do túnel Rubens Ferreira em direção a Avenida São Francisco onde descerá a maioria dos passageiros. As lembranças da infância ficam mais nítidas. O ano é 2017, mas na cabeça é manhã de um dia de 1989. Praça Mauá, Centro de Santos. Há vários coletivos estacionados e o trólebus com suas garras coladas nos fios chama atenção. A fila do banco está grande. É dia de receber o ‘ordenado’ na Cidade. Dia de comer pastel com caldo de cana ou cachorro quente das Lojas Americanas. A viagem no tempo é interrompida em um carrinho azul e branco de chá mate e suco de abacaxi.
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“O Centro tinha mais lojas abertas, mas o povo não tinha tanto poder de compra. Hoje está mais fácil. Há 30 anos trabalho no Centro. Tenho boas lembranças. Comecei como patrulheiro do Camps. Comprava bolacha nas Lojas Americanas e sentava na Praça Mauá. Aquele era o nosso almoço. A gente não tinha dinheiro para almoçar no restaurante. Ficava aquele monte de jovem aqui”, lembra o funcionário público Henrique Gainete ao apontar para a praça.
Em 1987, ano em que Henrique começou a trabalhar, canções de Madonna, Cindy Lauper, Luiz Caldas e Rosana (a do Amor e Poder) eram as mais tocadas nas rádios. Os jovens de Santos se divertiam em discotecas como a Lofty e a Zoom, que ficavam no coração do Gonzaga, distantes do Centro. A moeda em vigor no Brasil era o Cruzado. “Com o meu primeiro salário que recebi no dia 2 de janeiro de 1988 comprei um sapato na Internacional. Fiquei todo feliz”, disse ele em tom saudosista.
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A conversa acontece ao lado do carrinho de suco de abacaxi e chá mate. O pai de Henrique surge. O aposentado Otavio Silva também tem lembranças do Centro de Santos, afinal por muitos anos ajudou a organizar o trânsito na região da Praça Mauá. “Foram 10 anos trabalhando aqui. Dia de pagamento era muita gente. A Rua Amador Bueno e a Senador Feijó viviam lotadas. Lembro dos bailes no Humanitária (salão na Praça José Bonifácio com a Rua Brás Cubas) ”, disse.
O ambulante Arnaldo Felix ouve a conversa. Oferece chá mate gelado à Reportagem e conta que há um ano trabalha com o produto. Mas há décadas, o morador do Morro São Bento se dedica ao comércio boa parte desse tempo como funcionário de lanchonetes que próximas à rodoviária.
A viagem no tempo continua. Segue até a Praça dos Andradas onde existem os sebos, especialistas em comercializar memórias. A pastelaria dos chineses que pouco falam, uma das mais antigas do Centro, ainda preserva os letreiros de outrora. Naquela região também há os antigos armazéns de café na Rua do Comércio e na Gonçalves Dias, conhecida por abrigar o antigo prédio do Inamps e do Ambesp.
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O pastel é o atrativo do carrinho que há mais de 25 anos fica no mesmo lugar, na esquina da Rua Frei Gaspar com a Rua João Pessoa. “Aqui era o Banco Real. Quando cheguei do Ceará vim trabalhar com a minha tia, que comprou o carrinho de um japonês. Lembro que ali tinha várias barracas de camelô e uma lotérica que fechou”, contou José Edmilson, o Edmilson, que administra o negócio com o tio. O sabor de carne é o preferido da clientela fiel.
Infância
A memória do zelador Luis Marcelo Simões e Silva, de 37 anos, é forte quando o assunto é Centro de Santos. É deste pedaço da cidade onde nasceu que ele guarda boa parte das recordações da infância. Das pesquisas escolares na Biblioteca Municipal ao lanche comprado com carinho pela avó, a qual acompanhava uma vez por mês para receber o ‘ordenado’ (forma como salários e benefícios como aposentadoria e pensão eram chamados pelos mais antigos).
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“Eu lembro que ia receber com a minha vó no Banco Noroeste, na Rua XV. Era um dia muito bom. A gente comia pastel no Carioca ou lanche na Lojas Americanas. Todo mundo gostava do cachorro quente de lá. A fila era grande, mas eu preferia o cheeseburger”, disse Marcelo.
A conversa remete o zelador ao início dos 90, quando a inflação era a maior inimiga da economia brasileira, sobretudo dos assalariados. O comércio do Centro de Santos era o mais importante da região. Não haviam lojas fechadas como há hoje. A Praça Mauá abrigava o ponto final dos ônibus, que também ficavam estacionados em trecho da Rua General Câmara, em frente à Caixa Econômica. O poder aquisitivo da população era menor.
“O comércio era pulsante. A gente via aqueles homens vestidos com o uniforme da Cosipa e da estiva. Ninguém voltava para casa depois de ir à cidade sem tomar lanche ou comprar um presente. Tinha a Lojas Brasileiras, concorrente da Americanas, a Papelaria Jambo, onde o nosso material escolar era comprado. Minha avó amolava a tesoura no Doutor das Tesouras e comprava remédio na Farmácia Indiana. Foi um tempo muito bom que, infelizmente, não volta mais”, recordou Marcelo.
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O primeiro sapato ninguém esquece
A disposição das mercadorias ainda é a mesma do passado. Os simpáticos vendedores têm cabelos grisalhos. Toda Forma de Amor, de Lulu Santos, toca na caixa de som. A música de 1988 deixa o lugar ainda mais retrô. O preço dos sapatos é disposto em etiquetas preenchidas à caneta – o código de barras não passou por ali. No caixa, a máquina registradora antiga, um cliente de décadas e as memórias do gerente Salvador Mulero Neto, de 78 anos, que há 62 anos trabalha na Sapataria Internacional, uma das mais antigas da cidade e que ainda segue intacta ao tempo no Centro de Santos.
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“Entrei na loja como faxineiro em 8 de outubro de 1955, na loja da Senador Feijó. Fui estoquista, entregador, vendedor e subgerente. Todos os funcionários aqui têm muitos anos de casa, o mais novo tem 15 anos. Éramos uma rede na Baixada Santista. Hoje só temos essa loja e atendemos clientes de várias gerações. Gente que vinha com os pais ou os avós e hoje vem com os filhos e os netos”, destacou Salvador.
Quem entra na sapataria logo se desconecta de 2017. Há sapatos que ditaram moda em várias épocas. “Não tem igual. Venho aqui desde criança”, diz um cliente que faz o pagamento do sapato no caixa. Nessa hora, outra música da década de 1980 toca na caixa de som, Heaven, na voz do cantor canadense Bryan Adams, torna o momento ainda mais nostálgico.
O gerente Salvador segue relembrando as coisas boas do Centro de outrora. “Tenho muita saudade do seu Abilio, dono da Insinuante Magazine. Um amigo de 55 anos. Faleceu no ano passado. O comércio aqui era outro. Depois que tiraram o ponto final dos ônibus da Praça Mauá (que fica em frente a loja), o movimento nunca mais foi igual”, destacou.
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Ainda que o movimento da loja não seja o mesmo de quando o ex-patrulheiro do Camps Henrique comprou seu primeiro sapato, o segredo para a fidelização da clientela, segundo o gerente Salvador, vai além de preservar as características físicas do local. “O atendimento ao cliente é fundamental. O cliente bem atendido sempre retorna. Sempre digo que se foi bem atendido diga aos outros, se foi mal atendido diga a nós”, afirmou.
A memória musical
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A Musical é outra referência quando o assunto é memória do Centro de Santos. A loja, que completa 80 anos em 2017, foi reformada, mas não perdeu o charme que encanta os saudosistas clientes, que agora podem passar horas a conversar no café que o estabelecimento ganhou. Lá é possível mesclar a memória musical com a memória afetiva em meio aos vinis, CDs, DVDs, partituras e instrumentos.
“Esse ano completamos 80 anos e decidimos repaginar a loja, que é de 1937 e abriu primeiro na Rua Frei Gaspar. Nunca havia passado por uma reforma. Foram 115 dias de reforma. Reaproveitamos as antigas prateleiras e vidros. Temos agora um café, um happy hour e a mesma música ambiente de sempre. Quem entra na A Musical se sente no túnel do tempo”, disse o proprietário.
Pastel, tradição e as lembranças de Silvia
A viagem no túnel do tempo termina no tradicional Café Carioca, que neste ano completará 88 anos. No balcão, a professora Silvia Helena Soares, que come um pastel de carne, um de seus preferidos. Ela ouve falar que a reportagem é sobre um Centro de Santos que ficou na memória de muita gente e decide contribuir com as suas lembranças.
“As minhas memórias são de alegria com os meus amigos na adolescência. Moro em Guarujá e muitas vezes passei a tarde aqui no Centro. Sempre que posso retorno sozinha para lembrar dessa época. Não posso deixar de vir ao Carioca. Lugar familiar, sempre cheio e de muita alegria. Mas uma coisa que viveu esse tempo, como eu, não esquece, é do cachorro quente da Lojas Americanas. Lembro que comprava a salsicha para fazer igual em casa e nunca consegui. Acho que o segredo estava no pimentão que eles colocavam”, relembrou Silvia.
A guarujaense se emociona ao olhar para a sede dos Correios, que fica em frente ao Carioca. “Eu colecionava selos. Ia lá comprar os selos e depois parava aqui. É muita felicidade lembrar de um tempo tão bom”, disse em tom de quem quisesse parar a máquina do tempo e não mais voltar.
A professora se despede. Cumprimenta a Reportagem e um dos proprietários, o Soares, que, sorridente, a convida para voltar e nos convida a um café.