Cotidiano
Fiscais do Ministério da Agricultura destruíram o material científico alegando falta de documentos; cientistas questionam decisão e cobram revisão das regras
Expedição, liderada pelo professor Luiz Ricardo Lopes de Simone, do Museu de Zoologia da USP, teve duração de duas semanas / Divulgação
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Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) enfrentaram um duro revés ao verem incineradas amostras de moluscos e conchas coletadas na Gâmbia, na África Ocidental. O material, destinado a estudos científicos e colaborações internacionais, foi apreendido e destruído por fiscais do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, no dia 19 de maio. O episódio gerou forte reação da comunidade acadêmica, que denuncia arbitrariedade na decisão e pede revisão das regras para importação de material biológico com fins científicos.
A expedição, liderada pelo professor Luiz Ricardo Lopes de Simone, do Museu de Zoologia da USP, teve duração de duas semanas e foi financiada por cerca de R$ 120 mil, com recursos da Fapesp, CNPq e do próprio museu. As quase 30 quilos de amostras seriam utilizadas em três projetos de pesquisa, quatro teses de doutorado, cinco artigos científicos e colaborações com instituições como UFPR, UFRJ, Harvard (EUA) e Universidade de Helsinque (Finlândia).
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“O projeto tem como objetivo comparar a fauna marinha e costeira de moluscos dos dois lados do Atlântico, já que Brasil e África Ocidental foram um só continente no passado. Algumas espécies podem parecer iguais, mas a hipótese é que tenham divergido”, explica Simone. “A coleta é essencial para responder essas questões evolutivas e biogeográficas.”
Segundo Simone, o material foi inicialmente liberado pelo Ibama, mediante apresentação de um relatório sobre as espécies coletadas. No entanto, fiscais do Mapa decidiram reter a carga, alegando ausência de licenças prévias e certificação sanitária. No termo de fiscalização, consta que os pesquisadores não apresentaram documentos obrigatórios. Simone afirma que os itens não eram exigidos para importações científicas de baixo risco, conforme a Instrução Normativa Interministerial nº 32/2013.
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Em entrevista, ele relatou que a equipe chegou ao Brasil após 25 horas de voo, exausta, mas com toda a documentação exigida. “A gente tinha quase um centímetro de espessura de documentos. Licença do Ibama, permissão para portar material biológico, tudo certinho”, afirmou. Ainda assim, os fiscais abriram as malas de forma inadequada. “Eles rasgavam os sacos herméticos e deixavam o material exposto ao ar, o álcool evaporava rápido e os espécimes começaram a ressecar. Duas malas já estavam estragadas quando nos deixaram intervir.”
Após horas de inspeção, o Ibama autorizou a liberação, mas uma técnica do Ministério da Agricultura interveio, exigindo uma guia de importação do Brasil e do país de origem. “Eu falei: ‘Moça, esse material é isento’. Mas ela insistiu que precisava da guia, algo que nunca nos foi exigido antes.” Simone ainda tentou negociar: “Eu me ofereci para trazer um barril de álcool para conservar o material ali mesmo, mas não deixaram. Disseram que o material ia ficar lá. Eu avisei que ia estragar.”
Mesmo com a promessa de reavaliação no dia seguinte, os moluscos foram incinerados. “Fomos à sede do Ministério com toda a papelada, mostramos tudo. A fiscal lá nos disse: ‘Seu colega se equivocou. Eu vou ligar para liberar o material’. Mas vinte minutos depois ela voltou com o semblante fechado: ‘Sinto muito. O material já foi incinerado’. Foi devastador”, contou. “Fizeram a gente correr atrás de tudo à toa. O material começou a cheirar mal porque eles abriram os pacotes e não nos deixaram conservá-lo de novo. Foi um absurdo.”
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O caso gerou indignação em diversas instituições. O Museu de Ciências Naturais da PUC Minas publicou uma carta criticando a falta de diálogo entre os órgãos de fiscalização e pedindo mudanças urgentes nas normas. A Sociedade Brasileira de Malacologia, por meio de sua presidente, Lenita de Freitas Tallarico, cobrou responsabilização e classificou o ocorrido como um desrespeito à ciência brasileira: “A ciência não pode ser tratada como crime.”
A legislação vigente, embora permita isenções, exige que instituições e responsáveis estejam devidamente cadastrados, segundo a advogada Gabrielle Brüggemann Schadrack, especialista em direito aduaneiro. Ela ressalta que, mesmo diante de falhas, geralmente há prazo para regularização antes da destruição definitiva — o que, segundo o professor da USP, não foi respeitado.
Até o fechamento desta reportagem, o Ministério da Agricultura não havia se manifestado.
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