De segunda a sábado, Cícero sai de Peruíbe às 5h da manhã e pega dois ônibus para chegar em Santos / Fernando Yokota/Divulgação
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De longe dá para saber quando ele está chegando. Sem alarde, sua passagem se anuncia através do som de um tipo de flauta doce conhecido como flauta pã, tradição que acompanha os amoladores desde o século XX. Quem fica curioso e sai na janela para ver que melodia é essa se depara com um senhor baixinho empurrando um carrinho que mais parece uma bicicleta de uma roda só.
É o seu Cícero Lourenço dos Santos, de 74 anos, que diz ser o último amolador porta a porta de facas, tesouras e alicates da Baixada Santista. "Antigamente tinha mais gente nesse ofício, mas todo mundo parou e só eu continuei. Cheguei a atender clientes em Santos, Guarujá e Praia Grande, mas tô velho e a perna encolheu, então hoje faço só Santos", conta.
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Há 20 anos ele mora em Peruíbe, mas não gosta de trabalhar por lá porque diz que as pessoas não querem pagar pelo serviço, que varia de R$ 10 a R$ 20, de acordo com o objeto a ser afiado. Então, de segunda a sábado, ele sai de casa às 5h da manhã e pega dois ônibus para chegar em Santos. Como não paga mais a passagem, a viagem compensa mesmo nos dias em que não ganha nada.
"Tem vezes que eu não atendo ninguém e o dia de trabalho não paga nem o meu almoço, mas eu sei que no dia seguinte algum cliente vai aparecer", diz com uma animação típica de quem nem pensa em parar.
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"Fia, se eu parar eu morro. O trabalho é minha saúde. Fiquei em casa quatro meses por causa da pandemia e quase não aguentei. Eu peço a Deus que me mantenha assim e quando não puder mais, pode me levar porque eu não vou ficar no mundo parado, sem fazer nada".
ROTINA
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Sempre a pé, seu Cícero anda pela cidade toda, da Divisa até a Ponta da Praia, e divide o atendimento aos bairros por dias da semana, por exemplo: às segundas ele atende a Avenida Conselheiro Nébias; às terças é a vez do Gonzaga; quarta é o canal 1 e o José Menino, e assim por diante.
Já quem prefere agendar o serviço, liga para o seu Cícero (9 9641 8729) e marca a data e a hora que ele vem. "Anoto tudo na minha caderneta e não esqueço ninguém".
Com tantos anos nesse ofício, não faltam amigos por onde passa. Tanto, que antes de pegar o ônibus para voltar para Peruíbe, ele guarda seu equipamento de trabalho em casas alheias. Uma delas é o quintal de uma residência na Ponta da Praia. "O moço é muito meu amigo e guarda meu carrinho há anos, sem cobrar nada", conta.
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Tem também a garagem de um prédio na Avenida Conselheiro Nébias. "Vixi, o pessoal lá me chama até pra churrasco no fim do ano. Posso deixar o carrinho toda semana que eles cuidam pra mim".
VIDA
Seu Cícero nasceu em Aracaju, mas atualmente já não tem mais família lá. Na juventude morou em Salvador, onde aprendeu sozinho o ofício de amolador e também como construir o equipamento, que usa pedra de esmeril acionada pelo pedal para afiar alicates de manicures, facas de cozinheiros e lâminas de máquinas de moer frios.
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Aos vinte e poucos anos, foi para São Paulo e Rio de Janeiro, cidades onde fez morada por algum tempo e que diz conhecer muito bem graças ao trabalho que o permitiu ser andarilho por todos esses lugares.
Só em 1993 veio para a Baixada Santista. Morou em Santos, Praia Grande e agora em Peruíbe, de onde não quer mais sair. Como amolador, conquistou a casa própria e proveu o sustento dos sete filhos, hoje espalhados entre São Paulo, Bahia, Sergipe e Rio de Janeiro.
"Tive 15 filhos na vida, mas oito morreram. Ensinei esse ofício para todos, mas eles têm outras profissões. Tenho um filho que é pedreiro, outro jardineiro, um caseiro, eles se viram. E ainda sou avô de 24 netos e 13 bisnetos".
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Feliz com a entrevista, ele pede jornais para poder mostrar aos parentes e amigos de longa data e brinca: "tô famoso". Antes de partir, seu Cícero deseja saúde, pega sua flauta e segue presenteando com música doce as ruas apressadas de Santos.