Cotidiano
Documentos revelam que São Vicente antecipou a abolição local não por gesto de benevolência, mas por reconhecer a responsabilidade de enfrentar e reparar um sistema sustentado pela violência institucional que moldou o Brasil
O Livro-Ata da Câmara Municipal, preservado em arquivo público, reúne documentos importantes dessa trajetória, incluindo a sessão de 31 de outubro de 1886, data em que foram assinadas as cartas de liberdade / Divulgação
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“Quando o nosso país tiver a felicidade de ver o câncer da escravidão completamente superado, estas duas modestas canetas terão o valor de uma relíquia.” A frase, registrada na ata da Câmara Municipal de São Vicente em 14 de maio de 1887, faz referência aos instrumentos usados para assinar as cartas de liberdade das pessoas escravizadas na cidade — ato realizado em 31 de outubro de 1886, um ano e meio antes da Lei Áurea.
Os documentos revelam que São Vicente antecipou a abolição local não por gesto de benevolência, mas por reconhecer a responsabilidade de enfrentar e reparar um sistema sustentado pela violência institucional que moldou o Brasil.
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O Livro-Ata da Câmara Municipal, preservado em arquivo público, reúne documentos importantes dessa trajetória, incluindo a sessão de 31 de outubro de 1886, data em que foram assinadas as cartas de liberdade. Embora muitos nomes não apareçam na documentação oficial, a atuação de abolicionistas anônimos e de lideranças negras locais foi essencial para a ruptura com a escravidão.
Na semana do Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado nesta quinta-feira (20), São Vicente apresenta ações realizadas nesta data e durante todo o ano, que colocam a pauta racial no centro.
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Hoje, mais de um século depois, a cidade mantém políticas públicas que buscam enfrentar as sequelas deixadas pela escravidão, como o racismo estrutural. Entre essas iniciativas está o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (COMPIR), criado para formular, acompanhar e fiscalizar ações voltadas à equidade racial.
Segundo o presidente do COMPIR e conselheiro tutelar da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania (Sedhc), Felipe Galvão, o concelho atua como ponte direta entre a população e o poder público. “O COMPIR visa promover, formular, acompanhar e fiscalizar as políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade racial e para o combate ao racismo, discriminação e demais formas de intolerância. O conselho é o ator central e principal elo da sociedade civil e do poder público nas questões de igualdade racial”.
Felipe reforça que o trabalho é contínuo. “Ofertamos suporte técnico às pessoas que sofrem discriminação racial, promovemos campanhas de letramento racial, ampliamos o debate sobre respeito religioso e fiscalizamos políticas públicas para diminuir o racismo institucional.” Entre os avanços recentes, ele destaca dois marcos: a criação da comissão de cotas raciais para concursos, promoções e seleção de estagiários da Prefeitura; e a instalação da estátua de Iemanjá na orla, após 17 anos de articulação, garantindo o direito à liberdade religiosa.
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A agenda de promoção da igualdade também se fortalece por meio da educação. A Secretaria de Educação (Seduc), por meio do programa Somos Muitas Cores (Procor), desenvolve abordagens antirracistas na rede municipal, com formação contínua de educadores, materiais didáticos, debates históricos e ações culturais que valorizam identidade e ancestralidade.
Nesta quarta-feira (19), a Prefeitura promove uma edição especial de letramento racial para servidores públicos, reforçando a responsabilidade institucional de quem atua diretamente com a população.
Outra iniciativa importante ocorreu nesta quarta-feira (19), durante uma ação promovida pelo COMPIR em parceria com a Sedhc, a OAB e o Procor. A atividade impactou mais de mil pessoas, com entrega de panfletos e uma dinâmica reflexiva: pessoas negras foram convidadas a responder à pergunta “Como seria um dia da sua vida sem racismo?”, enquanto pessoas brancas receberam orientações sobre responsabilidade racial e práticas de combate ao preconceito. Depoimentos espontâneos registrados durante a ação destacaram a urgência do tema e a necessidade de ampliar o debate nas ruas.
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Entre os depoimentos registrados, chamou atenção o relato de Ana Lúcia Aranha, que falou sobre como o racismo atravessa a vida de quem o enfrenta diariamente. Para ela, “o racismo é uma doença que é injetada nas pessoas por falta de conhecimento, respeito e empatia”. Ana Lúcia ressaltou como esse impacto atinge primeiro o psicológico: “ É uma bala que entra na mente e no coração, abalando a autoestima, a segurança e a estabilidade. Quando o psicológico é atingido, ele abala a pessoa inteira”.
A Prefeitura também mantém iniciativas que reconhecem e fortalecem a presença das comunidades negras na Cidade. Um exemplo é o censo municipal dos terreiros de religiões de matriz africana, que registra oficialmente esses espaços.
Outro ponto importante da história recente de São Vicente é a realização da primeira Marcha das Pretas, em 2011. O ato reuniu mulheres negras da região e colocou em evidência pautas relacionadas a igualdade, violência de gênero, identidade e participação social.
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Para Felipe Galvão, enfrentar desigualdades estruturais é tarefa permanente. “Quando as políticas públicas enfrentam os problemas estruturais, elas deixam de apagar incêndios e passam a construir soluções de verdade. Isso significa reduzir desigualdades históricas, ampliar oportunidades, fortalecer a democracia e transformar a vida das pessoas de forma profunda e duradoura”.
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No Dia da Consciência Negra, São Vicente reafirma que enfrentar o racismo não é escolha ou gesto simbólico, mas obrigação histórica. A Prefeitura lembra que racismo é crime, previsto no Artigo 20 da Lei nº 7.716/1989, com pena de reclusão e responsabilização administrativa e civil.