Cotidiano
Autoridades de saúde já classificam o avanço da doença como "crise nacional", impulsionada principalmente pelo uso de drogas injetáveis e por uma prática alarmante chamada bluetoothing
Em janeiro, o governo declarou oficialmente um surto nacional e, segundo o vice-ministro da Saúde, Fiji pode registrar mais de 3 mil novos casos até o fim de 2025 / Freepik
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Um país de menos de um milhão de habitantes vive hoje uma das epidemias de HIV que mais crescem no mundo. Em apenas uma década, Fiji passou de menos de 500 pessoas vivendo com o vírus para quase 6 mil em 2024 — um aumento de mais de 1.000%. E o cenário continua se agravando.
Autoridades de saúde já classificam o avanço da doença como “crise nacional”, impulsionada principalmente pelo uso de drogas injetáveis e por uma prática alarmante chamada bluetoothing — na qual usuários compartilham o próprio sangue após o uso de drogas intravenosas.
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De acordo com o Ministério da Saúde e Serviços Médicos de Fiji, 1.583 novos casos de HIV foram registrados em 2024, treze vezes mais do que a média dos últimos cinco anos. Entre eles, 41 eram de crianças com até 15 anos, e muitos adolescentes contraíram o vírus por meio do compartilhamento de seringas nas ruas.
“Mais jovens estão usando drogas”, relata Sesenieli Naitala, fundadora da Survivor Advocacy Network, organização que atua em Suva, capital do país. “Conheci um menino de 10 anos com HIV — ele contraiu o vírus compartilhando seringas durante a pandemia.”
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Em janeiro, o governo declarou oficialmente um surto nacional e, segundo o vice-ministro da Saúde, Fiji pode registrar mais de 3 mil novos casos até o fim de 2025.
A prática do bluetoothing — ou hotspotting — consiste em injetar sangue de uma pessoa que acabou de usar drogas em outra, muitas vezes utilizando a mesma seringa.
“Vi um grupo de jovens fazendo fila para receber o sangue de outro usuário”, contou Kalesi Volatabu, diretora da ONG Drug Free Fiji. “Não são apenas seringas que eles compartilham — é o sangue.”
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O método se popularizou como forma de dividir o custo de uma dose de metanfetamina e reduzir o uso de seringas, que são difíceis de adquirir em Fiji devido à restrição de vendas e à ausência de programas públicos de troca de agulhas.
A situação é agravada pelo uso intravenoso de metanfetamina cristalina, mais comum em Fiji do que o consumo inalado observado em outros países.
Especialistas afirmam que a epidemia é também resultado de fatores estruturais e culturais. Fiji é uma nação de forte tradição religiosa, o que dificulta políticas públicas voltadas à redução de danos, como a distribuição de seringas e preservativos.
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A carência de programas de prevenção e a falta de profissionais de saúde também impactam o diagnóstico precoce e o tratamento.
“Os sistemas de apoio simplesmente não existem”, afirma José Sousa-Santos, chefe do Pacific Regional Security Hub da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia. “Não há infraestrutura suficiente para lidar com o que está por vir. O que estamos vendo é apenas o início de uma avalanche.”
Nos últimos 15 anos, Fiji se tornou um ponto estratégico do tráfico internacional de metanfetamina, situado entre o Leste Asiático e a América — regiões produtoras da droga — e a Austrália e Nova Zelândia, principais mercados consumidores.
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O impacto disso é direto: o uso de drogas injetáveis responde hoje por 48% dos casos de HIV, superando a transmissão sexual (47%).
Enquanto ONGs locais como a Survivor Advocacy Network e a Drug Free Fiji lutam para conter o avanço da doença com campanhas educativas e distribuição limitada de insumos, o governo tenta ampliar o acesso a testes e medicamentos antirretrovirais.
Relatórios da Global Alert and Response Network alertam que a resposta de Fiji ainda é insuficiente, marcada por falhas em equipamentos laboratoriais, falta de testes rápidos e de medicamentos.
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“O que realmente assusta é que as infecções já aconteceram — só ainda não as enxergamos”, alerta Sousa-Santos.
Para os especialistas, a epidemia de HIV em Fiji é um sinal de alerta global: um lembrete de como a pobreza, o estigma e a falta de políticas de saúde pública podem transformar um país tropical em epicentro de uma tragédia silenciosa.