Cotidiano
Entidades cristãs afirmam que projeto é impossível de aplicar, ameaça o diálogo inter-religioso e abre brecha para que o Estado interfira em textos sagrados
A proposta, aprovada na Câmara em 2022, veta mudanças em qualquer conteúdo bíblico do Antigo e do Novo Testamento / ImagefX
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O projeto de lei que pretende proibir qualquer alteração, adaptação ou adição nos textos da Bíblia voltou a avançar no Senado e reacendeu um debate delicado: o Estado pode determinar o que é ou não a versão 'correta' de um texto religioso usado por diferentes tradições?
A proposta, aprovada na Câmara em 2022, veta mudanças em qualquer conteúdo bíblico do Antigo e do Novo Testamento, com o objetivo declarado de impedir 'manipulações ideológicas' e preservar o que o autor considera o 'patrimônio espiritual do povo brasileiro'.
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Mas especialistas, teólogos, entidades católicas e evangélicas e organizações bíblicas afirmam que o projeto é inviável, impreciso e perigoso.
O relator da proposta na Comissão de Direitos Humanos do Senado, Magno Malta (PL-ES), deu parecer favorável, e o texto agora segue para a Comissão de Educação. Malta afirma que o projeto não busca impor uma versão oficial, mas garantir que 'o conteúdo não seja deturpado'.
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Mesmo assim, durante audiência pública realizada em outubro, representantes de diferentes igrejas deixaram claro que o projeto abre um precedente problemático.
O padre Cássio Murilo Dias da Silva, da CNBB, foi direto:
'Nesse projeto, a Bíblia deixa de ser palavra de Deus para ser palavra humana ou palavra do Congresso.'
Para ele, estabelecer um texto como 'original' seria ignorar séculos de história e comprometer o diálogo ecumênico.
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Um dos principais pontos críticos apontados por teólogos é que não existem duas versões idênticas da Bíblia. Católicos e evangélicos, por exemplo, utilizam cânones diferentes.
O reverendo Erní Walter Seibert, diretor da Sociedade Bíblica do Brasil, explicou que até mesmo orações populares ilustram essa diversidade.
No Pai-Nosso, a versão católica termina em 'livrai-nos do mal', enquanto a evangélica inclui 'pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre'.
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Ambas são aceitas.
Ambas estão presentes em diferentes versões bíblicas.
E ambas refletem tradições distintas, igualmente legítimas.
'É impossível aplicar a lei como está', resume Seibert.
Os estudiosos alertam que o projeto poderia bloquear revisões técnicas que fazem parte da preservação do texto bíblico há séculos.
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Antes das versões modernas:
não havia capítulos nem versículos;
o Antigo Testamento não tinha vogais escritas;
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traduções eram constantemente revisadas conforme avanços no estudo de línguas antigas.
Essas adaptações, feitas ao longo de milênios, nunca alteraram a mensagem, mas permitiram que o texto fosse compreendido por diferentes povos e épocas.
Seibert lembra:
"Quando Paulo escreveu suas cartas, não existia capítulo nem versículo. Isso também é uma adição técnica."
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Mesmo entre congressistas cristãos, não há consenso.
A senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que solicitou audiência pública, afirmou que o projeto gera confusão e que há “pautas mais urgentes”.
Já o presidente da Frente Parlamentar Católica, deputado Luiz Gastão (PSD-CE), diz que o ideal seria reconhecer a autenticidade das diferentes Bíblias, não tentar unificá-las:
'O texto deixa muitos pontos em aberto.'
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O deputado Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), autor da proposta, diz que a iniciativa não busca impor versão única, mas impedir manipulações ideológicas.
Especialistas, porém, avaliam que a redação do texto abre margem justamente para o contrário: permitir que o Estado, pela primeira vez, defina parâmetros para textos religiosos, algo considerado incompatível com um país laico.
A polêmica não envolve apenas fé ou teologia, mas também:
liberdade religiosa,
pluralidade de tradições cristãs,
laicidade do Estado,
direito à produção e revisão de traduções,
limites da atuação do poder público em questões espirituais.
O futuro da proposta agora depende das próximas comissões no Senado e, possivelmente, de votação em plenário.
Até lá, permanece a principal questão levantada por teólogos e estudiosos:
Pode o Estado determinar qual Bíblia é 'imutável' em um país que abriga diversas tradições cristãs — e nenhuma versão única do texto sagrado?