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Cotidiano

Profissionais de saúde contam as vivências na Casa Anchieta

Integrantes da equipe de intervenção narram aspectos da mudança de gestão no espaço; ex-estagiário do hospital psiquiátrico contesta ação e cita pontos negativos no trato dos transtornos mentais após o ato

Rafaella Martinez

Publicado em 16/05/2017 às 10:00

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Ex-coordenador nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde foi o interventor do espaço; A psicóloga Izabel Calil, integrante do movimento antipsiquiátrico, relembra a situação dos pacientes; Para o psiquiatra Miguel Rezende a intervenção não trouxe as / Rodrigo Montaldi/DL

“No dia em que começamos a fazer a intervenção não tínhamos com clareza a perspectiva do que aquilo iria representar, mas tínhamos a certeza de que era necessário mudar o cenário. Quase trinta anos depois a gente pode falar com certeza de que aquele ato desencadeou no país uma confiança de muitas pessoas de que era possível modificar o sistema de atenção psiquiátrica, não centrado na internação e sim na inclusão”.

Sentado em um sofá do lado de fora do auditório da Câmara de Santos, o psiquiatra e professor universitário Roberto Tykanori relembra do dia em que ingressou no Anchieta para propor mudanças significativas na forma de lidar com os mais de 500 internos do lugar. Ele esteve em Santos na última semana participando de uma audiência pública justamente sobre a necessidade de apoio psicossocial.

“É importante ver que o assunto segue em pauta em uma sociedade onde cada vez mais pessoas sofrem de algum tipo de transtorno mental. É tempo de olhar atentamente a forma como estamos vivendo e a forma como estamos transmitindo a vida para nossos filhos”, conta.

Militante da reforma psiquiátrica desde os anos 1980, quando ainda era estudante de medicina, o interventor da Casa de Saúde Anchieta foi Coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde.

“O Anchieta não era diferente da maioria dos hospitais psiquiátricos. O modo de organização despersonalizava as pessoas a partir do momento em que havia muitos pacientes em um mesmo lugar e pouca gente para cuidar dessas pessoas.  O segundo ponto é que eles não eram vistos como pessoas de direito, então ninguém ligava para o que acontecia com eles. Somando a isso o fato de uma coisa específica no Brasil que a partir de 1967 foi instituído o sistema de pagamento por cabeça e por dia, então, quanto mais tempos as pessoas ficavam, mais lucro gerava. Logo, não havia o interesse de ter alta. O próprio sistema estimulava as pessoas a continuarem permanentemente internadas”, conta Tykanori.

Ao lado do marido Domingos Stamato (falecido em 2005), a psicóloga Maria Izabel Calil Stamato acompanhou a intervenção na ‘Casa dos Horrores’. Ela relembra das condições insalubres nas quais viviam os pacientes do local.

“Todo hospital tem mortes, mas as do Anchieta eram mortes por negligência e abandono, não por conta da doença. Nos deparamos com um ambiente de superlotação e pouquíssimos profissionais, que não conseguiam fazer o acompanhamento adequado. Mulheres que sequer recebiam um absorvente quando estavam menstruadas, muitas pessoas internadas por conta do abandono das famílias, além da sala de eletrochoque e das solitárias para castigo”, relembra.

Integrante do movimento antipsiquiátrico (embrião da luta antimanicomial), a coordenadora do curso
de Psicologia da Universidade Católica de Santos (UniSantos) conta que as denúncias de maus tratos chegavam através dos próprios alunos que faziam estágio no hospital e que a intervenção culminou com a mudança na política pública sobre Saúde Mental, cuja reportagem completa será publicada na edição desta quarta-feira.

Contraponto

Estagiário por três anos da Casa de Saúde Anchieta entre os anos 1980 e 1982, o psiquiatra Miguel Rezende rechaça a ideia de que o hospital era um ‘depósito’ de seres humanos e afirma que era feito tudo o que se podia para garantir a resolutividade dos pacientes.

“O Anchieta tinha convênio com a Faculdade de Medicina de Santos e era reconhecido junto ao INAMPS, na época o órgão gestor, como hospital de ensino, devidamente fiscalizado pelas autoridades competentes. Havia sim um problema de superlotação, motivo inclusive que me levou a não continuar no espaço após formado, mas tudo era questão de ponto de vista. Na hora que os leitos foram extintos eu entendi o motivo da superlotação: era a única opção disponível para a Baixada Santista, sendo que o local que dava retaguarda para a região na época ficava em Dracena”, conta o médico.  

Ele conta que existiu um acordo entre o Anchieta e o Governo do Estado de o Estado de transferir profissionais de Saúde para o hospital por um prazo de dez anos, até que o equipamento pudesse se adequar (visto que na época existia apenas 17 psiquiatras em Santos).

“Como eu havia passado no concurso e era funcionário do Estado naquele momento, em 1988, participei diretamente desse processo por ter uma experiência de seis anos no hospital. No meio desse processo, quando tudo estava sendo viabilizado com o gerenciamento do Estado, aconteceu a intervenção municipal, onde o governo vigente usou acunhas como ‘casa dos horrores’. Naquele dia, Santos dormiu com 17 psiquiatras em e acordou com 70”, aponta Rezende.

Ele conta que o trato a Saúde Mental passou por significativos avanços ao longo dos últimos 30 anos e que as mudanças na forma de enxergar o tema hoje tiveram o crescimento no arsenal de medicamentos disponíveis como base, uma vez que a intervenção na Casa de Saúde Anchieta ‘não teve qualquer aspecto positivo’.

“A única coisa que aconteceu foi a redução no número de leitos, o que é um retrocesso, pois precisamos desses leitos. Não estou defendendo a internação nos moldes em que ela era feita, mas em alguns casos ela é necessária. Hoje vemos pessoas que imploram por uma internação e não conseguem”, finaliza.

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