Cotidiano
Embora hoje seja uma das orações mais conhecidas do catolicismo, sua história atravessa séculos, misturando Bíblia, tradição popular, liturgia medieval e formalização pela Igreja
Fruto da Bíblia, da tradição, da liturgia e da fé popular, a Ave-Maria se firmou como um dos pilares da devoção cristã / Domínio público
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A Ave-Maria, repetida diariamente por milhões de fiéis em todo o mundo, nasceu aos poucos — e não de uma única vez. Embora hoje seja uma das orações mais conhecidas e recitadas do catolicismo, sua história atravessa séculos, misturando Bíblia, tradição popular, liturgia medieval e formalização pela Igreja.
Muito antes de ser oficializada, ela já pulsava no dia a dia de cristãos que não sabiam ler, em um tempo em que participar da missa significava ouvir palavras em latim sem compreendê-las totalmente.
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Especialistas consultados pela BBC News Brasil lembram que a Ave-Maria é fruto de um processo lento e orgânico dentro da Igreja. 'Ela foi se formando progressivamente no coração da Igreja', afirma o padre Rodrigo Natal, estudioso da devoção mariana.
A prece reúne duas partes distintas. A primeira, totalmente bíblica, combina a saudação do anjo Gabriel a Maria durante a Anunciação ('Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco') com as palavras de Isabel ('Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre').
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Esses trechos foram recitados desde os primeiros séculos na liturgia cristã, especialmente no Oriente.
Com o tempo, a fórmula chegou ao Ocidente e passou a ser usada por religiosos e leigos como forma de devoção, sobretudo porque era simples de memorizar.
Durante a Idade Média, porém, faltava algo: uma oração não era completa sem um pedido. Foi então que surgiram versões populares que acrescentavam apelos à Virgem Maria. Religiosos e fiéis iletrados, que substituíam o salmo diário por repetições da saudação angélica, passaram a incluir uma súplica.
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Registros mostram que, entre os séculos XI e XVI, diversas versões circulavam na Europa cristã. A fórmula mais próxima da atual surgiu no século XV e, aos poucos, se difundiu entre monges e comunidades paroquiais.
A segunda parte — 'Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte' — nasceu dessa tradição popular, amadurecida na vida monástica e nas práticas de devoção cotidiana.
A Ave-Maria só ganhou forma definitiva em 1568, durante o papado de Pio V, no contexto do Concílio de Trento, que buscava padronizar práticas religiosas após a Reforma Protestante. A partir dali, ela passou a integrar oficialmente o Breviário Romano e ser difundida em livros de oração aprovados pela Igreja.
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A popularidade da Ave-Maria cresceu ainda mais graças ao rosário. Como muitos cristãos não sabiam ler e não podiam recitar os 150 salmos, religiosos passaram a substituí-los por 150 Ave-Marias — divididas em três conjuntos de 50, dando origem ao terço. Para auxiliar na contagem, criaram um cordão de contas: o rosário como é conhecido hoje.
Essa combinação transformou a Ave-Maria na oração mais repetida do catolicismo, superando até o Pai-Nosso em número de recitações diárias.
Segundo teólogos, sua força está na simplicidade e no significado profundo:
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É fácil de decorar, mesmo para quem não lê;
Une texto bíblico e tradição popular, o que reforça sua credibilidade espiritual;
Expressa devoção afetiva, ao apresentar Maria como mãe e intercessora;
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Resume dogmas centrais da mariologia, como o título de 'Mãe de Deus', definido no Concílio de Éfeso (431);
Acompanhou o povo simples, que a usava para substituir leituras inacessíveis.
'O que explica sua disseminação é o fato de ser uma fórmula muito simples, carregada de significados espirituais', observa o pesquisador Thiago Maerki.
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Embora a Ave-Maria formalizada tenha pouco mais de 450 anos, há registros ainda mais antigos de devoções marianas. Em 1927, foi encontrado no Egito um papiro com uma oração dirigida à Mãe de Jesus, possivelmente datado entre os séculos III e IX:
'À vossa proteção recorremos, santa Mãe de Deus. Não desprezeis as nossas súplicas…'
O texto mostra que a tradição de dirigir preces à Virgem Maria já estava profundamente enraizada muito antes da consolidação da Ave-Maria como conhecemos.
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Fruto da Bíblia, da tradição, da liturgia e da fé popular, a Ave-Maria se firmou como um dos pilares da devoção cristã. Simples, memorizável e carregada de significado afetivo, ela se tornou parte da identidade religiosa de milhões de pessoas — e segue sendo recitada em lares, igrejas e rituais mundo afora, exatamente como há séculos.