A filha de Vera Lúcia dos Santos foi assassinada; Débora Maria da Silva perdeu o filho, de 29 anos; Ilza Maria de Jesus perdeu o filho de 19 anos; Vera Lucia Andrade de Freitas aguarda justiça / Rodrigo Montaldi/DL
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Com a mochila nas costas, os colegas de escola Mateus Andrade de Freitas e Ricardo Porto Noronha retornavam para casa, após a suspensão das aulas do dia em virtude dos ataques da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Havia sido um dia normal até então, mas naquela noite de 17 de maio de 2006, nenhum dos dois conseguiu chegar em casa.
Mateus e Ricardo foram duas das vítimas fatais da onda de violência que atingiu a maior cidade do País em maio de 2006. Os números oficiais de mortos ainda são divergentes. De acordo com a Ouvidoria da polícia foram 493; o Ministério Público de São Paulo analisa 509 óbitos e o Movimento Mães de Maio, que leva em conta um estudo da ONG Conectas, afirma que foram 532 assassinatos no período entre 12 e 20 de maio de 2006.
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Mateus tinha 21 anos e cursava o 3º do Ensino Médio, além de trabalhar como ajudante em um sítio. O trabalho, em outra ocasião, havia feito com que o rapaz reprovasse na escola. Ricardo tinha 17 anos e sonhava em ser jogador de futebol. Órfão de pai e mãe, fora criado pela avó, Maria da Pureza de Araújo Noronha. Dias após sua morte ela recebeu uma ligação convidando o neto para estrear na categoria de base de um time de futebol. Ambos os inquéritos foram arquivados em 2008 sem respostas ou punições.
As histórias de Mateus e Ricardo são semelhantes à outros centenas de relatos ocorridos naquele mês de maio. A onda de violência no Estado de São Paulo teve início na sexta-feira, 12 de maio, quando uma delegacia na capital foi atacada por integrantes do PCC. Outros dez ataques naquela noite, além de duas rebeliões em presídios, deram início à maior onda de violência já presenciada pelo Estado de São Paulo.
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A motivação para o início dos ataques foi a transferência de 765 presos para o presídio de segurança máxima de Presidente Venceslau. No total, mais de 300 ataques contra símbolos do Estado e agentes de segurança aconteceram nos cinco dias subsequentes. Ao menos 36 policiais militares e 15 agentes penitenciários foram mortos no período. A Polícia Civil não informou o número de óbitos.
A chamada “reação” aos ataques, composta por homens encapuzados que saiam às ruas para vingar os assassinatos de policiais, deixou um saldo ainda maior de vítimas: ao menos 493. A maior parte dessas mortes nunca foi esclarecida.
“O que mais dói, além da perda, é que tentaram criminalizar o meu filho. Disseram que ele morreu por dívidas de droga, sendo que ele não era usuário. Nós conseguimos ver o exame negativo de toxicologia do Ricardo, mas o do meu filho simplesmente desapareceu. Questionamos isso e o inquérito foi desarquivado, em 28 de junho de 2007, para ser arquivado novamente em 2008. Até agora esperamos respostas”, disse a aposentada Vera Lucia Andrade de Freitas, mãe de Mateus.
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A Defensoria Pública do Estado de São Paulo encaminhou, em março de 2015, uma denúncia à Comissão interamericana de Direitos Humanos pedindo investigação dos crimes na esfera federal e indenização para as vítimas. No relatório há o nome de 10 vítimas dos ataques na região.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública, questionando sobre as investigações dos assassinatos na Baixada Santista, mas não teve retorno.
Mortes podem ser federalizadas
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O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu na terça-feira (10) ao Superior Tribunal de Justiça que a Polícia Federal passe a investigar a chacina ocorrida em maio de 2006 no Parque Bristol, bairro do extremo sul de São Paulo.
A cena do crime, que foi alterada, sugere forma de atuação similar a uma série de outros assassinatos que vinham acontecendo no Estado por parte de grupos de extermínio compostos por policiais militares.
A Polícia Civil de SP instaurou inquéritos para apurar os fatos, mas concluiu pela ausência de elementos suficientes de autoria, encaminhando os autos ao Ministério Público do Estado, que pediu o arquivamento do caso. A Justiça acolheu o pedido e alegou não haver informações sobre autoria, motivação ou envolvimento de policiais.
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Na avaliação da Procuradoria, a apuração policial do caso foi prematuramente interrompida, sem ouvir nenhum policial, e deixou de avaliar questões importantes para a elucidação, como informações referentes às armas, munições e veículos utilizados.
Para a Procuradoria, a violação aos direitos humanos, com a lesão ao dever estatal de uma adequada e eficiente investigação, pode ocasionar a responsabilização do Brasil nas cortes internacionais.
A procuradoria-Geral da República analisa desde 2010 o pedido de federalização de 11 assassinatos registrados na Baixada Santista no mesmo período.
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“Não saia de casa”
O conselho que muitas mães deram aos seus filhos durante os primeiros dias de maio de 2006 é também o título de um documentário que estreia hoje no Canal Futura. Com relatos de integrantes do Movimento Mães de Maio, o documentário rompe o silêncio sobre os crimes e retrata a luta dessas mulheres por justiça. De acordo com o Movimento, 74 pessoas foram mortas nas cidades litorâneas: 29 no Guarujá; 15 em Santos; 12 em São Vicente e uma em Peruíbe, além de outros 17 assassinatos em Caraguatatuba e São Sebastião.
Nas telas, mulheres como a fundadora do Movimento, Débora Maria - que teve o filho Edson Rogério Silva dos Santos, de 29 anos, assassinado na rua Torquato Dias, mesma via que naquela tarde, ele havia varrido, pois trabalhava há quatro anos na empresa Terracom - contam sua história e clamam por justiça. O inquérito sobre a morte de Edson foi arquivado em 23 de junho de 2008.
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“Aquele dia é hoje. Ele nunca acabou. Aquele dia é todo dia. O coração do meu filho parou de bater no dia 15 de maio, mas a bala ultrapassou e me matou também. O que ainda funciona é o meu cérebro, que luta pela transformação e contra o conformismo e a cultura do medo implantada pelo Estado. Na morte, o Edson me deixou um legado que foi: ‘Mãe, levanta e vai à luta. Luta pelos vivos, pois para mim só resta a justiça’. Hoje eu luto por essa justiça”.
A dona de casa Ilza Maria de Jesus Soares perdeu o filho, Thiago Roberto Soares, de 19 anos, na noite do dia das mães. “Meu filho morreu no dia 14 de maio de 2006. No dia 14 o Thiago foi a uma pizzaria com alguns amigos. Ele me ligou a noite falando que já ia para casa e que não era para eu fechar a porta, pois ele estava sem chave. Até hoje a porta está aberta, esperando meu filho voltar. Às 23h30 me ligaram avisando que era para eu correr para a Santa Casa de Santos porque meu filho estava lá. Não mataram apenas os nossos filhos. Mataram todas nós”, destacou Ilza.
Uma testemunha presencial relatou que viu quatro pessoas encapuzadas num Marea preto e que duas delas estavam com calça cinza e botas pretas, itens que fazem parte do uniforme da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Um dos policiais apontados como suspeito pela morte de Thiago, lotado no 1º Batalhão de Choque – Rota de Santos – possuía um Marea preto, exatamente como o reconhecido pelas pessoas que estavam na pizzaria. Ele nunca foi chamado para depor. O inquérito policial foi arquivado em 7 de maio de 2008.
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Vera Lucia dos Santos perdeu a filha Ana Paula Gonzaga dos Santos, grávida de nove meses e o genro, Eddie Joey de Oliveira. Há três dias do parto, Ana Paula sentiu vontade de tomar uma vitamina e foi até a padaria com o marido. Nunca retornou. “Testemunhas disseram que antes de atirar na barriga da minha filha falaram que filho de bandido também tinha que morrer”, disse.
O vigia que presenciou o crime foi morto horas mais tarde. Seis meses depois, o inquérito policial foi arquivado em 22 de novembro de 2006 e o crime resultou não-solucionado.