Cotidiano
Tendência nas redes mistura carência afetiva, performance digital e o fascínio pelo bizarro - especialistas alertam para os limites entre fantasia e saúde mental
Celebridades brasileiras e internacionais também 'adotaram' bebês reborn / Reprodução/Redes Sociais
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No cenário das redes sociais, onde o engajamento se tornou sinônimo de validação, uma nova tendência vem ganhando espaço e dividindo opiniões: a febre dos bebês reborn. Bonecas hiper-realistas feitas de silicone estão sendo tratadas como filhos por jovens — e nem tão jovens assim — que encenam desde partos até rotinas médicas e cuidados diários. O que começou como hobby ou item de coleção, rapidamente se transformou em um espetáculo digital.
Vídeos com milhões de visualizações mostram adolescentes “levando seus filhos” ao hospital ou organizando aniversários com direito a presentes, convidados e lembrancinhas. Um dos casos mais notórios é o de Yasmin Becker, de apenas 17 anos, que se apresenta como mãe de dois filhos reborn e compartilha sua rotina no TikTok. O vídeo em que leva sua “filha” com febre ao médico já acumula mais de 479 mil curtidas e impulsionou seu canal a mais de 132 mil seguidores.
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Yasmin revelou que sempre gostou de bonecas realistas, mas percebeu o potencial de viralizar quando seu primeiro vídeo alcançou 10 mil seguidores: “Vi que poderia fazer algo maior”. E fez. Criou uma personagem: uma mãe adolescente que vive os desafios da maternidade, ainda que fictícia.
A “maternidade reborn” ganhou força nas redes justamente por ser, como define a psicanalista Dra. Andréa Ladislau, uma performance fora da curva: “A internet recompensa o conteúdo performático. Quanto mais absurdo, mais engajamento. Isso cria uma realidade paralela em que o indivíduo busca reconhecimento, pertencimento e prazer digital, em detrimento da sua própria saúde emocional”.
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Segundo a especialista, a dramatização da maternidade reborn — que inclui partos simbólicos, consultas médicas e vídeos emocionados — pode ser tanto uma forma de fuga quanto um reflexo de traumas não elaborados: “É um desejo inconsciente de viver um ritual simbólico, confundindo fantasia com realidade. O problema surge quando isso passa a interferir nas relações humanas e sociais”.
Embora muitas adeptas afirmem que os reborns são apenas uma forma de passatempo ou expressão artística, a psicanálise alerta para os riscos. “Em casos extremos, pode haver um apego patológico que revela distanciamento da realidade, solidão profunda ou luto não elaborado”, explica Andréa.
Ela reforça que os bebês reborn podem ter função terapêutica, especialmente para mulheres que sofreram perdas, traumas de maternidade ou enfrentam infertilidade — desde que esse uso seja orientado por profissionais da saúde mental. “O risco está quando essas figuras simbólicas ocupam o lugar de relações humanas reais e tornam-se a única forma de conexão emocional”.
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A febre dos bebês reborn também escancara uma questão social mais profunda: a supervalorização da maternidade como pilar da identidade feminina. “A nossa cultura impõe a maternidade como o ápice da realização da mulher, ignorando dores, traumas e individualidades. Quando a mulher não deseja ser mãe ou enfrenta dificuldades, é estigmatizada”, observa a psicanalista.
Neste sentido, a tendência pode ser interpretada tanto como uma crítica inconsciente à idealização da maternidade, quanto como uma forma de romantizá-la: “Muitas dessas mulheres vivem a maternidade simbólica sem os riscos, dores ou renúncias da maternidade real”.
Para a Dra. Andréa, o algoritmo potencializa comportamentos performáticos que flertam com o absurdo. “É uma verdadeira armadilha emocional: quanto mais curtidas e seguidores, maior a falsa sensação de validação. Isso alimenta um ciclo de produção de conteúdo cada vez mais distorcido da realidade”.
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Essa distorção pode afetar influenciadores e seguidores. “É o que chamamos de máscaras sociais. As pessoas deixam de ser quem são para se tornarem quem o público espera que elas sejam. O emocional se fragiliza, e o real cede espaço ao performático”.
Apesar de parecer apenas mais uma trend digital, a febre dos bebês reborn revela muito sobre a solidão contemporânea, a necessidade de pertencimento e os efeitos da hiperexposição online. “Vivemos em uma sociedade que valoriza o visual perfeito e a vida acelerada. Os reborns são a síntese de uma carência emocional coletiva que está sendo expressa simbolicamente nas redes sociais”, afirma Andréa.
A moda dos bebês reborn pode ser vista como brincadeira, ferramenta terapêutica ou performance digital. O que definirá seu impacto é a consciência de quem consome e produz esse conteúdo. Saber distinguir o real da fantasia é o que separa o lúdico do patológico.
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Enquanto a internet continuar premiando o bizarro com curtidas e seguidores, novas tendências surgirão — cada vez mais radicais, cada vez mais simbólicas. Mas, no fim, talvez tudo isso fale menos sobre bonecas de silicone e mais sobre o que falta dentro de nós.