Cotidiano
A Fazenda Santa Clara é um monumento impressionante da arquitetura rural brasileira, mas também um símbolo das contradições e da brutalidade do período escravocrata
A preservação da Fazenda Santa Clara é vista por historiadores e gestores culturais como essencial para o reconhecimento da memória nacional / Reprodução
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Erguida entre 1760 e 1780, no interior montanhoso de Minas Gerais, a Fazenda Santa Clara é considerada a maior fazenda da América Latina — um monumento impressionante da arquitetura rural brasileira, mas também um símbolo das contradições e da brutalidade do período escravocrata.
Com seus 6.000 metros quadrados, 365 janelas, 52 quartos e 12 salões — números que representam os dias, semanas e meses do ano —, a construção colonial é ao mesmo tempo testemunha da opulência dos senhores do século XVIII e memorial da dor das milhares de pessoas escravizadas que ali viveram e morreram.
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A Fazenda Santa Clara foi erguida durante o auge do ciclo do ouro, e sua imponência refletia o prestígio econômico e político de seu proprietário, Francisco Tereziano Fortes, o Comendador. A propriedade tornou-se símbolo de poder e status, reunindo riquezas, plantações, senzalas e uma estrutura arquitetônica monumental.
Mas, sob a beleza das colunas e dos vitrais, esconde-se uma história marcada por dor, violência e exploração.
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'A Santa Clara é mais do que um marco da arquitetura. É um retrato vivo das contradições do Brasil colonial, onde luxo e barbárie coexistiam lado a lado', explica o historiador mineiro Carlos Henrique Souza, pesquisador do patrimônio escravocrata.
Atrás das 365 janelas — algumas delas pintadas falsamente para esconder a estrutura da senzala —, a fazenda funcionava como centro de reprodução de pessoas escravizadas, mesmo após a proibição do tráfico negreiro no século XIX.
Estima-se que cerca de 2.800 pessoas tenham vivido e trabalhado sob regime de escravidão dentro da propriedade, submetidas à violência física, psicológica e sexual. Homens e mulheres eram separados, tratados como instrumentos de trabalho e reprodução, para manter o fornecimento contínuo de mão de obra.
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A fazenda também abriga lendas e relatos sobre tragédias familiares. Um dos mais conhecidos conta que a esposa do Comendador teria sido mantida trancada por 30 anos em um dos quartos da casa-sede, reassumindo o controle da propriedade apenas após a morte do marido — um episódio que reforça o clima de mistério e opressão que ainda paira sobre o lugar.
Resistente ao tempo, a Fazenda Santa Clara foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA). Hoje, a antiga propriedade integra o circuito de turismo histórico e cultural da região, permitindo que visitantes conheçam de perto um dos capítulos mais complexos da história brasileira.
O roteiro guiado, com cerca de uma hora e meia de duração, percorre os salões principais, a capela, as antigas masmorras e o pátio da senzala, antes de terminar com uma caminhada até a Cachoeira de Santa Clara — um refúgio de águas cristalinas que contrasta com o peso das memórias do passado.
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A preservação da Fazenda Santa Clara é vista por historiadores e gestores culturais como essencial para o reconhecimento da memória nacional. Mais do que um ponto turístico, o local funciona como um espaço de reflexão sobre o legado da escravidão e as desigualdades ainda presentes na sociedade brasileira.
'Visitar a Santa Clara é revisitar as origens do Brasil — é compreender que o progresso também foi construído sobre a dor e o trabalho forçado de milhares de pessoas', destaca Maria Lúcia Ferreira, curadora de turismo histórico de Minas.
Além do valor simbólico, o turismo cultural gerado pela fazenda ajuda a fortalecer a economia local, movimentando o comércio, a hotelaria e a produção artesanal.
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A Fazenda Santa Clara é, ao mesmo tempo, obra-prima e ferida aberta. Sua grandiosidade arquitetônica encanta; sua história, porém, obriga o visitante a encarar as sombras da escravidão e a refletir sobre o país que surgiu desse passado.
Preservá-la é preservar a verdade histórica — um ato de respeito à memória de quem construiu o Brasil sem jamais ter sido livre.