Cotidiano
Com fé, estudo e resiliência, Cristiane dos Santos transformou a infância no lixão em uma trajetória de sucesso que inspira empreendedores
Cristiane dos Santos criou o Grupo Krys, que hoje é formado por sete empresas / Júlia Macêdo/DL
Continua depois da publicidade
Nascida em 1983, em Santos, no Litoral de São Paulo, Cristiane dos Santos Silva cresceu enfrentando desafios que moldaram sua determinação. Aos cinco anos, mudou-se com a família para a Vila dos Criadores, conhecida como a região onde ficava o Lixão da Alemoa. Ali, ela permaneceu até os 14 anos.
Ela lembra como foi a chegada àquele local ainda precário. “Chegamos para morar ali numa época em que não havia água encanada nem luz elétrica. A memória mais forte que guardo desse tempo é a dos mosquitos. Foi logo no início da ocupação daquela área, que era basicamente industrial. Nós morávamos perto do oleoduto, e permanecemos ali por muitos anos”, conta.
Continua depois da publicidade
A primeira impressão foi tão marcante que, até hoje, ela relata o episódio como um divisor de águas em sua infância. “Eu tinha cinco anos quando fomos para lá. Lembro que, assim que cheguei, fui recepcionada pelos mosquitos. A situação foi tão grave que fiquei completamente picada, a ponto de minha mãe precisar me levar ao hospital. Sempre brinco que fiz um acordo com eles, porque precisávamos aprender a conviver no mesmo espaço”, brinca.
Do barco à bike: como nasceu a cerveja exclusiva para atletas do Litoral de SP
Continua depois da publicidade
Apesar das dificuldades, o lixão também oferecia recursos que supriam carências básicas da família. “Morei lá dos cinco aos quatorze anos, até que conseguimos o cadastro do CDHU e fomos contemplados com um apartamento. Nesse período, vivemos muitas dificuldades, porque aquela região era o lixão da cidade. Mesmo depois de desativado, o aterro ainda era nossa fonte de sobrevivência. Dali vinham materiais escolares, brinquedos, alimentos – coisas que não tínhamos acesso de outra forma, como iorgute, bolachas e guloseimas. Sabíamos até o horário em que os caminhões de supermercados chegavam, e corríamos para esperar, porque era a chance de conseguir algo diferente”, relembra.
Veja abaixo fotos do tempo que Cristiane e família moravam na Vila dos Criadores:
Ela recorda que, mesmo nesse cenário, havia momentos de união e alegria. “A família era muito unida: eu, minha mãe, meu pai e minha irmã. Guardamos lembranças felizes desse tempo. Houve até episódios curiosos, como quando um supermercado pegou fogo e os caminhões despejaram latas de leite condensado já cozidas. Para nós, aquilo foi uma verdadeira festa, dias de fartura de doce de leite”, sorri lembrando.
Continua depois da publicidade
A sobrevivência da família exigia enfrentamento de riscos diários. Cristiane relembra que a mãe não trabalhava fora para cuidar das filhas ainda pequenas. "Já meu pai atuava instalando e fazendo manutenção de portas de mola em comércios. Assim, cabia a mim e à minha mãe ir até o lixão em busca de recursos, sempre com muito cuidado, pois o ambiente era insalubre e perigoso”.
Nem mesmo estudar era simples. No entanto, Cristiane e a família faziam sacrifícios para não perder aulas. “A escola também era um desafio. Como no bairro não havia nem água nem luz, tampouco havia escola. Precisávamos estudar no Jardim Piratininga ou no Jardim São Manoel (bairros vizinhos). Fui matriculada no Piratininga, que era mais próximo, mas mesmo assim tínhamos que caminhar cerca de 20 a 30 minutos todos os dias. O trajeto passava por empresas, canais sem saneamento e até pelo oleoduto, atravessando pontes improvisadas de madeira. Era arriscado, com caminhões e animais no caminho, mas minha mãe sempre nos acompanhava para garantir nossa segurança”, explica.
Ao completar 14 anos, Cristiane buscou independência por meio do trabalho. Ela relembra: “Aos 14 anos, comecei a trabalhar em uma loja de R$ 1,99 no centro de Santos. Foi o início da minha independência. Mais tarde, mudei para o período noturno no Jardim São Manoel, para conciliar os estudos com o trabalho. Cresci muito cedo, pois meus pais se casaram jovens, sem estabilidade financeira, e ainda havia muitos problemas familiares”.
Continua depois da publicidade
Apesar dos obstáculos, o desejo de transformar sua vida nunca saiu de foco. “Mesmo assim, eu tinha clareza de que queria um futuro diferente. Sonhava em morar perto da praia e em estudar. Minha mãe sempre reforçava: ‘A única forma de mudar seu destino é estudando’. Isso ficou gravado em mim. Talvez venha daí até hoje minha fixação por canetas e sapatos, porque, quando ia ao lixão, era o que eu mais procurava”, conta.
De brigadeiros à rede de confeitarias: jovem transforma doces em negócio de sucesso
E foi ainda na adolescência que encontrou o companheiro de vida e de jornada. “Conheci meu marido, Deive, ainda na adolescência, quando tínhamos 12 anos. Crescemos juntos naquela comunidade e começamos um namoro inocente que perdura até hoje. Aos 17 anos, casei, terminei o ensino médio e segui em busca do sonho da faculdade”, relembra.
Continua depois da publicidade
Para alcançar esse sonho, enfrentou uma maratona de trabalhos. “Trabalhei em várias coisas: manicure, vendedora de semijoias, em pet shop, em casa de massas. Foi nesse período que paguei meus primeiros cursos profissionalizantes: secretariado, telemarketing, departamento pessoal e informática. Um professor me orientou a tentar primeiro um curso técnico de contabilidade antes da faculdade. Segui o conselho, estudei muito, enfrentei jornadas duras, mas passei na ETEC”, comenta.
O primeiro contato com a contabilidade confirmou a escolha: “No primeiro dia de aula, ao ouvir a professora falar de ‘débito e crédito’, tive a certeza: era aquilo que mudaria a minha vida. Com apoio do meu marido, consegui conciliar trabalho e estudo, mesmo em condições exaustivas. Concluí o curso técnico, fiz o ENEM e conquistei bolsa pelo ProUni para cursar faculdade de contabilidade no Guarujá”.
A dedicação se tornou rotina por anos, mostrando a faceta determinada e resiliente de Cristiane. “Foram anos de sacrifício, pegando ônibus intermunicipais, estudando de domingo a domingo. Mas valeu a pena. Fui efetivada ainda como estagiária, formei-me e construí minha carreira”.
Continua depois da publicidade
A virada definitiva aconteceu pouco antes de se formar. “No último ano da faculdade, em 2014, decidi empreender. Abri meu primeiro escritório no centro de Santos, começando apenas com uma mesa e uma cadeira. Aos poucos, o negócio cresceu. Hoje, temos um grupo empresarial, com diferentes áreas de atuação, e uma equipe de mais de 25 colaboradores”, orgulha-se.
O Grupo Krys, que nasceu de uma mesa simples, hoje reúne mais de sete empresas. As áreas vão da contabilidade digital a uma fintech especializada em condomínios, além de hub de marketing, administradora de condomínios e parcerias no setor portuário.
Cristiane olha para o presente com gratidão e senso de missão. “Olho para trás e vejo que conquistei muitos dos sonhos daquela menina que um dia revirava o lixão em busca de canetas. O estudo e a contabilidade transformaram a minha vida. Hoje, meu objetivo é inspirar outras pessoas a não desistirem, a serem resilientes e acreditarem em seus sonhos, por mais difíceis que pareçam”, comenta.
Continua depois da publicidade
Agora, ela projeta ampliar os negócios e gerar impacto social. Entre os planos, estão a expansão do grupo para o exterior e a criação de um centro de negócios que reúna diferentes áreas em um mesmo espaço, oferecendo capacitação e oportunidades.
E, mesmo planejando o futuro, Cristiane faz questão de reforçar a mensagem que a trouxe até aqui: “Olho para trás e vejo que conquistei muitos dos sonhos daquela menina que um dia revirava o lixão em busca de canetas. O estudo e a contabilidade transformaram a minha vida. Hoje, meu objetivo é inspirar outras pessoas a não desistirem, a serem resilientes e acreditarem em seus sonhos, por mais difíceis que pareçam”.