Cotidiano

Esta doença misteriosa desliga o medo e desafia a lógica do cérebro humano

Casos raros ajudam cientistas a entender como o cérebro controla o medo e o que acontece quando esse sistema falha

Ana Clara Durazzo

Publicado em 06/10/2025 às 10:00

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Em contextos urbanos, o medo primário pode ser menos essencial do que no passado, enquanto estresse e ansiedade seguem em níveis altos / Freepik

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Pular de paraquedas, descer de rapel de um arranha-céu ou encarar cobras e aranhas sem qualquer aceleração do pulso. Para o britânico Jordy Cernik, essa falta de reação é rotina desde que ele retirou as glândulas adrenais para tratar a síndrome de Cushing. O procedimento eliminou a ansiedade — e junto levou a descarga de adrenalina que acompanha experiências extremas.

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A história de Cernik não é isolada. Casos de pessoas com perda específica do medo ajudam a mapear, na prática, os circuitos do cérebro que regulam nossas respostas a ameaças.

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O exemplo mais estudado é o de S.M., paciente com a raríssima doença de Urbach-Wiethe (lipoidoproteinose). A mutação no gene ECM1 provoca calcificações e morte celular que, em S.M., destruíram quase totalmente as amígdalas cerebrais — estruturas em forma de amêndoa ligadas ao processamento do medo.

Quando nada assusta

Nos anos 2000, o neuropsicólogo Justin Feinstein e colegas tentaram de tudo para assustar S.M.: filmes de terror, casas mal-assombradas, cobras e aranhas. Nada. Ela não reconhecia expressões de medo em outras pessoas e se aproximava de riscos com uma curiosidade desarmada — inclusive reduzindo a distância “confortável” diante de estranhos para cerca de 34 cm, bem abaixo da média.

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O padrão sugere que a amígdala orquestra o medo diante de ameaças externas (um assaltante, um animal peçonhento, um barulho repentino), coordenando corpo e cérebro para a reação de “luta ou fuga”.

Mas existe outro caminho para o pânico

O mesmo grupo conduziu um teste em que S.M. inspirou dióxido de carbono (CO) — estímulo interno que o corpo interpreta como risco de sufocamento. A previsão era de indiferença. O resultado: um ataque de pânico intenso. Outros pacientes sem amígdalas tiveram respostas semelhantes.

A pista é clara: há pelo menos dois percursos do medo.

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Ameaças externas passam pela amígdala, que aciona o hipotálamo, a hipófise e, por fim, as adrenais, liberando adrenalina e cortisol.

Ameaças internas (como CO elevado) são detectadas pelo tronco encefálico, que dispara o pânico mesmo sem a amígdala — e, paradoxalmente, a amígdala parece frear esse circuito quando está intacta.

Para o psicólogo Alexander Shackman, a conclusão é direta: a amígdala é crucial para o medo externo, mas não é necessária para o pânico visceral provocado por gatilhos internos.

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Evolução, sobrevivência e a vida moderna

Em animais, lesões nas amígdalas custam a vida em poucos dias na natureza: sem o circuito de detecção de perigo, eles se expõem a ameaças fatais. No ambiente humano contemporâneo, S.M. vive há décadas sem amígdalas — embora já tenha passado por situações arriscadas. O caso reabre o debate: em contextos urbanos, o medo primário pode ser menos essencial do que no passado, enquanto estresse e ansiedade seguem em níveis altos.

Entenda: Síndrome de Cushing

A síndrome de Cushing ocorre quando há excesso crônico de cortisol — por uso de corticoides ou por produção interna (tumores na hipófise que elevam ACTH, nas adrenais ou, raramente, tumores que produzem ACTH em outros órgãos).

Sintomas comuns: ganho de peso no tronco e rosto (“face em lua”), estrias arroxeadas, pele fina, fraqueza muscular, hipertensão, osteoporose, maior risco de infecções, alterações menstruais e, em crianças, baixa estatura.

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Diagnóstico: dosagens de cortisol (sangue, urina e/ou saliva), teste de supressão com dexametasona e exames de imagem (RM/TC).

Tratamento: depende da causa — redução gradual de corticoides, cirurgia (hipófise/adrenal), radioterapia e/ou medicações que reduzem a produção de cortisol ou bloqueiam seus efeitos. Em casos selecionados, pode ser necessária a remoção das adrenais, procedimento que muda radicalmente a resposta ao estresse — como no caso de Jordy Cernik, que deixou de sentir a “onda” de adrenalina.

Por que isso importa

Saúde mental: distinguir medo externo de pânico interno pode refinar terapias para ansiedade e transtornos do pânico, mirando circuitos diferentes.

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Políticas de risco: entender a perda de medo ajuda em protocolos de segurança e assistência social para pessoas mais expostas a situações perigosas.

Pesquisa básica: casos raros como o de S.M. são “experimentos naturais” que revelam a arquitetura do cérebro.

Em uma frase: o medo não é um único botão no cérebro — é um painel de circuitos. E quando um deles falha, o outro pode acender, mostrando que a biologia do pavor é bem mais sofisticada do que parece.

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