Cotidiano
Releitura doce do bolinho tradicional baiano vira sucesso em Aracaju, mas é criticada por descaracterizar patrimônio cultural afro-brasileiro
Decorado com flores, velas e embalagens temáticas, o quitute vem sendo vendido em pontos turísticos da capital sergipana e tem ganhado destaque nas redes sociais / Reprodução/X/@caffeepls
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Um novo modismo gastronômico em Aracaju (SE) tem gerado polêmica e acalorado debates entre inovação e respeito às tradições culturais. Batizado de “acarajé do amor”, o prato é uma versão doce e romântica do tradicional acarajé baiano, agora servido com cobertura de brigadeiro, morangos e até pétalas de rosas. A proposta, segundo seus idealizadores, é oferecer uma "experiência sensorial e emocional".
Decorado com flores, velas e embalagens temáticas, o quitute vem sendo vendido em pontos turísticos da capital sergipana e tem ganhado destaque nas redes sociais. Nomes como “coração quente” e “paixão ardente” acompanham as pequenas porções oferecidas em barracas ambientadas com música e mensagens românticas. A receita, no entanto, rompe completamente com os ingredientes tradicionais: feijão-fradinho, vatapá, camarão e caruru deram lugar ao caramelo e ao chocolate.
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A inovação, porém, não foi bem recebida em Salvador, berço do acarajé no Brasil. A Associação de Baianas de Acarajé (Abam) divulgou uma nota oficial rechaçando as mudanças. “Somos empreendedoras ancestrais e focadas na tradição deixada por nossos antepassados, sem surfar nas influências contemporâneas sem propósito”, diz o comunicado.
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A entidade também afirmou que estuda acionar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para avaliar se o uso do nome “acarajé” em um contexto tão distinto poderia configurar apropriação cultural.
Segundo a Abam, o uso da marca tradicional para vender um produto completamente desconectado de sua história religiosa, simbólica e ancestral representa um desrespeito. Desde 2005, o ofício das baianas de acarajé é reconhecido pelo Iphan como Patrimônio Cultural do Brasil, o que, segundo o instituto, demanda preservação e valorização de suas práticas originais.
Embora o acarajé tenha se popularizado em todo o Brasil como uma iguaria de rua, suas origens remontam à religiosidade afro-brasileira. De acordo com registros históricos, a receita teria sido trazida por africanos escravizados oriundos do atual Benim, e carrega profundo valor simbólico dentro das religiões de matriz africana, especialmente o candomblé.
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Diante disso, a proposta do "acarajé do amor", por mais criativa que seja do ponto de vista comercial, esbarra em uma fronteira sensível: até onde a gastronomia pode reinventar sem apagar ou distorcer uma herança cultural?
Enquanto o debate segue quente, o “acarajé do amor” segue conquistando novos clientes em Aracaju — e dividindo opiniões entre o doce sabor da inovação e o amargo gosto do desrespeito à tradição.