O principal motivo para essa redução drástica é o abate em larga escala para atender à demanda chinesa por colágeno, extraído da pele do animal e usado na produção do ejiao uma gelatina medicinal popular na China / Freepik
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Símbolo de resistência, força e identidade cultural do Nordeste, o jumento brasileiro está desaparecendo. Em apenas algumas décadas, sua população caiu 94%, passando de 1,37 milhão de animais em 1999 para cerca de 78 mil em 2024, segundo a Frente Nacional de Defesa dos Jumentos. Mantido o ritmo atual, especialistas alertam que a espécie pode ser extinta no país até 2030.
O principal motivo para essa redução drástica é o abate em larga escala para atender à demanda chinesa por colágeno, extraído da pele do animal e usado na produção do ejiao — uma gelatina medicinal popular na China, sem eficácia científica comprovada. O mercado global movimenta cerca de R$ 42 bilhões por ano.
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'Produzir jumentos para abate não é rentável, é puro extrativismo. O ritmo de abate é maior do que a capacidade de reprodução da espécie', afirma o professor Pierre Barnabé Escodro, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Hoje, três frigoríficos na Bahia têm autorização federal para abater jumentos. Porém, pesquisadores denunciam a falta de rastreabilidade e controle sanitário. Um estudo publicado na revista Animals, em maio deste ano, revelou sinais de inflamação sistêmica em 104 animais destinados ao abate, indicando maus-tratos e falhas graves no manejo.
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A situação é agravada por uma cadeia produtiva inexistente — os animais são capturados ou comprados de forma irregular, em um processo considerado insustentável e extrativista. Entre 1996 e 2025, mais de um milhão de jumentos foram abatidos no Brasil, de acordo com estimativas de grupos de proteção animal.
A pele, principal item de valor, é revendida a até US$ 4 mil a unidade, enquanto os animais, cada vez mais escassos, chegam a custar R$ 400 a R$ 500, um valor até cinco vezes maior que há poucos anos.
A extinção dos jumentos brasileiros representa mais do que um colapso ambiental — seria uma perda irreparável para a cultura e a história do país. O animal, que por séculos foi essencial na agricultura familiar e no transporte rural, é um símbolo do semiárido nordestino, eternizado em canções, cordéis e na memória coletiva.
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O jumento nordestino é também um ecótipo único, com genética adaptada ao clima árido brasileiro. Sua extinção significaria o desaparecimento de um patrimônio genético que não existe em nenhum outro lugar do mundo.
Entre as iniciativas para reverter o quadro está um projeto da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que desenvolve estratégias de preservação e reprodução para salvar a espécie. Pesquisadores defendem ainda o uso de colágeno sintético produzido por fermentação de precisão, uma alternativa tecnológica que pode substituir o uso animal na indústria cosmética e farmacêutica.
Além disso, projetos de lei tramitam no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa da Bahia com o objetivo de proibir o abate de jumentos no país. No entanto, as propostas enfrentam resistência política e econômica.
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Outra frente de ação é a criação de santuários e áreas de conservação, onde jumentos abandonados possam ser protegidos e reintroduzidos à agricultura familiar ou utilizados em terapias assistidas, como a chamada 'jumentoterapia'.
Locais como Jericoacoara (CE) e Santa Quitéria, também no Ceará, já abrigam centenas desses animais sob vigilância de órgãos públicos e organizações protetoras.
'Transformar essas áreas em santuários fortaleceria o combate à extinção no médio prazo', defende o professor Escodro.
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Enquanto a União Africana aprovou recentemente uma moratória de 15 anos contra o abate de jumentos, o Brasil ainda debate o tema. Grupos de proteção animal lançaram a campanha 'Fim do Abate', pedindo a aprovação do PL 2.387/2022, que proíbe a prática em todo o território nacional.
O risco é real e urgente. Se nada for feito, o animal que ajudou a construir o Nordeste, transportando água, alimentos e sonhos, pode desaparecer em menos de uma década — levando consigo um pedaço fundamental da identidade e da memória brasileira.