04 de Novembro de 2024 • 20:27
Paulo, nome fictício, levava uma vida normal até os 16 anos. Trabalhava em uma gráfica durante o dia e cursava o 1º ano do Ensino Médio à noite. Filho de pais separados, foi criado pela mãe, a avó e o tio. Moravam em uma favela de Santos e, apesar das dificuldades financeiras, nunca faltou comida na mesa. Uma mudança nas leis trabalhistas o fez perder o emprego. A partir daí, a vida do então adolescente, hoje com 30 anos, mudaria radicalmente.
“Tive meu primeiro contato com a maconha. Comecei a andar com pessoas que eram envolvidas com o crime. Passava o tempo jogando bola e conversando. Parei de estudar. O que a minha mãe me dava já não era o suficiente. Queria usar roupa de marca e ter um veículo bom e isso ela não poderia me dar”, disse Paulo. “Minha avó dizia: tá ficando nas esquinas vai acabar arrumando vaga para a faculdade do crime”.
Trabalhar com carteira assinada não passava mais pela cabeça do adolescente Paulo. O embalo do ‘dinheiro fácil’ e da vida de ostentação já o tinham dominado. “Perguntaram para mim: e aí, negão, quer ir em um trampo? Fiquei pensando que tipo de trampo. Já estava com 17 anos. Soube que era um assalto. Nunca tinha pegado em uma arma. Sabia que não conseguiria emprego por causa da idade também. Resolvi ir. Outro menor foi junto”, contou.
O assalto foi a um restaurante. Bem sucedido, o crime rendeu R$ 1.400,00 para cada um. “Me senti o máximo. Comprei roupa das marcas que mais faziam sucesso na época. Para a minha mãe não descobrir escondia as roupas na casa dos amigos”, revelou. Entrou na vida de bailes e baladas. O bom filho se tornou rebelde. Passava o dia fumando maconha. A mãe, muito religiosa, já não dormia direito e apresentou problemas de saúde. “Ela falava que eu estava fazendo coisa errada, mas eu sempre desmentia”.
Com o sucesso do primeiro roubo e o fim do dinheiro, ele embarcou em outros assaltos. Agora o alvo eram os veículos de entrega. “Consegui comprar a minha própria arma e decidi roubar sozinho em outros locais da cidade. Quanto mais dinheiro eu tinha mais eu queria porque isso significava mais prestígio, mais mulher. Me achava o rei”, disse.
Ele conta que a essa altura a mãe já havia descoberto o que fazia. “Lembro que ela chorou muito e perguntava o que estava fazendo. Orava a Deus para que eu saísse daquela vida. Não queria saber não. Conseguia mais dinheiro roubando do que sendo office-boy. Ela sempre trabalhou. Uma vez disse que ia ajudar ela e ela não quis. Mandou eu guardar o dinheiro para o dia que eu fosse preso”, contou.
E o dia da primeira prisão chegou. Após um desentendimento com um conhecido, ele o atingiu com tiros. O homem resistiu aos ferimentos, mas o crime rendeu a Paulo um ano de internato na Fundação Casa. Ele foi um dos primeiros internos da unidade de São Vicente, inaugurada em 2002. Sem dinheiro, decidiu novamente roubar. “Foi um assalto bom. Rendeu muito dinheiro. Consegui comprar minha primeira moto. Decidi que ficaria um tempo sossegado, pois já estava visado”, contou.
Foi em um baile que Paulo conheceu a mulher da sua vida. “Mulher era o que não faltava. Tinha quantas e quando eu quisesse. Todas sabiam quem eu era e o que eu fazia. Mas ela era uma menina diferente. Decidi não contar para ela o que eu fazia”, disse. Relacionaram-se intensamente e, em alguns meses, ele foi preso novamente. Uma tentativa mal sucedida de assalto com um ferido lhe rendeu uma pena de nove anos e 11 meses prisão. “Fui para o CDP de São Vicente. A vida na prisão é um inferno”, contou.
A menina que ele havia conhecido no baile estava grávida de um menino e descobriu o que o pai de seu filho realmente era. Uma outra mulher, de um relacionamento anterior, também anunciou a gravidez de uma menina. Preso, não viu o nascimento das crianças. “Criei meu filho sozinha. O amava muito e ainda assim aceitei ele. Fui algumas vezes visitá-lo. Meu filho já havia nascido”, contou Maria, nome fictício, que é a atual esposa de Paulo.
Em 2006, ano conhecido pela maior manifestação no sistema prisional paulista, Paulo participou da rebelião que ocorreu no presídio em São Vicente. A revolta foi comandada por uma facção criminosa. Devido à ação, ele foi transferido para uma penitenciária no interior do Estado com integrantes da organização. Conhecido, ele foi convidado a integrar o grupo. “Não tinha jeito. Já estava dentro, era conhecido como se fosse mesmo não sendo. Decidi entrar”, revelou.
Por pertencer à organização, Paulo ficou ainda mais conhecido. Era linha de frente nas rebeliões que aconteciam nos presídios em que passou — foram 11 no total — entre eles Venceslau I, Valparaíso e Mirandópolis. “Mirandópolis é a cadeia com o regime mais justo. Não tem essa de pobre ou rico. São todos tratados da mesma forma. Pensava, meu Deus, quando vou sair daqui?”, contou. Cada falta que cometeu nos presídios significou, em média, um ano a mais na sua pena, que chegou a 22 anos e 11 meses.
Ao descobrir que o pai do seu filho havia entrado para a organização, Maria não quis mais contato com ele. “Sempre disse a ele que se entrasse poderia me esquecer. Ficamos anos sem nos falar e sem nos ver”, contou. Paulo integrou posto importante na facção.
A mudança na vida dele viria com um pedido do filho. “Liguei para ele e perguntei o que queria de Natal. Ele me disse ‘quero o senhor de presente, quero que o senhor pare com essa vida e fique comigo’. Desliguei o telefone e comecei a chorar. Pensei, mano, tenho que parar com essa vida. Que exemplo vou dar para os meus filhos. Vou chegar aos 40 anos e não ter nada e nem ninguém”, disse emocionado.
Ele contou que dentro dos presídios existem os espaços religiosos. Ouviu a palavra de um pastor que disse que ele iria se recuperar. Após um desentendimento na organização acabou sendo excluído. “Disse: agora vou largar essa vida. Isso não é para mim. O sistema não recupera ninguém. Você tem que querer. Me peguei em oração, jejuei, passei o pão que o diabo amassou. A tentação é muito forte. Tive bom comportamento por um ano e três meses e conquistei o direito ao semi-aberto. Trabalhava de dia e voltava para a cadeia à noite”.
Nos dias em que tinha liberdade para visitar a família, voltou a ter contato com a mãe de seu filho. Percebendo que ele estava disposto a iniciar uma nova vida, Maria retomou o relacionamento. O bom comportamento e o cumprimento de boa parte da pena — 10 anos — lhe renderam a liberdade, mas com a condição de arranjar um emprego. “O juiz deu 30 dias para que eu conseguisse um trabalho. Sai entregando currículo, mas por conta do meu antecendente criminal era difícil. Ninguém quer dar emprego para ex-presidiário. Mas como você vai reconstruir a vida se não tiver oportunidade?”, questionou.
Faltando quatro dias para o término do prazo estipulado pelo juiz, Paulo conseguiu a vaga que lhe garantiria a liberdade e a nova vida. “Foi Deus. Trabalho como ajudante de cozinha em um comércio de alimentos e fichado. Meus patrões disseram que estavam dando uma oportunidade”, contou. No final do ano passado, ele e Maria se casaram em uma cerimônia simples, porém de muita emoção. “Minha mãe não acreditou que o seu filho era outro. Chorou muito. Não esperava que eu fosse mudar. Orou muito para ver esse dia chegar”.
Para preservar o casal, e a pedido deles também, o Diário do Litoral decidiu não revelar os verdadeiros nomes. “A gente sabe que ainda há muito preconceito”, disse Maria. Os dois se converteram ao cristianismo e são evangélicos.
Paulo ainda responde processo pela participação na rebelião de 2006. Não pensa mais voltar para a vida que levou um dia. “Não tem preço que pague a liberdade. Todos os dias peço perdão a Deus pelo sofrimento que fiz a outras pessoas. Lembro do que passei na cadeia e me sinto um lixo. Passa um filme na minha cabeça. Querer comer e não poder. Vi muita coisa ruim mesmo. Não me vejo mais nessa vida. O que mais quero agora é a minha casa com a minha família e ser feliz”, afirmou emocionado. “Digo para os jovens que a vida do crime não vale à pena. É ilusão”.
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